terça-feira, 4 de agosto de 2009

é a tua antiga casa. na tua antiga rua. o cenário da tua infância. dormes. ruídos de fundo. batem na porta. assustadoramente. um homem diz-te que há um outro homem que já não o é. transformou-se. corre como um lunático a quatro patas. tornou-se num cão. mete medo às velhas e come crianças quando tem fome. dizes ao homem que te bateu na porta para entrar. que aí está seguro. vês o outro ao fundo da rua. ele ladra e vem na direcção da tua porta. fechas a porta a correr. ele embate na madeira com o seu corpo de homem cão. deve ser gigante. passam-se dias e dias e a rua está em silêncio. ouvem-se apenas os passos de corrida do cão gigante que já deixou de ser homem. tens de sair de casa. detestas estar preso e a fome já se instalou. aproveitas uma breve distracção do cão e corres para o quintal da frente. fechas o portão com toda a força. ele bem salta mas não consegue entrar. sempre que te aproximas da grade ele rosna. ameaça-te. provavelmente estás perdido. a sua energia está num outro grau da sobrevivência. parece imortal. não podes dormir. estás sozinho no quintal em frente à casa da tua infância e tens um cão que te ameaça. de repente ouves um barulho de outra casa. outra porta. um velho vem armado com um pau. o cão ataca-o. o velho bem se tenta defender mas o cão vai-lhe direito à garganta. uma dentada certeira e o velho cai. o cão olha-te enquanto tu o olhas a ele e ao velho que estremece de sufoco. tens de sair. tens de sair. começas a suar de nervos. o cão mete-te nojo. cresce-te uma espécie de raiva. tens ganas de matar o cão. tens ganas de liberdade. abres o portão do quintal em frente da tua antiga casa. atravessas as grades e caminhas na sua direcção. apanhas uma pedra na rua. segues na sua direcção. ele espera-te. parece um duelo. tu ficas quieto. ele fica quieto. gigante e quieto. olham-se profundamente. conhecem-se no limite da sobrevivência. tu avanças a passos largos e o teu coração dispara. ele corre na tua direcção. agarram-se. ele tenta morder-te. deita-te ao chão. tu seguras no seu pescoço para evitar os seus dentes. inventas força dentro de ti. como se o amanhã não existisse. puxas o braço atrás. dás-lhe com a pedra na cabeça. bem perto do olho. ouves um osso estalar. ele sangra para cima de ti. para o teu rosto. tu bates mais uma vez. e mais outra. e mais outra. e mais outra. e mais outra. e mais outra. perdes-te na necessidade de violência. ele cai em cima de ti. sentes o seu mijo quente em cima da tua roupa. o sangue da sua cabeça corre sem parar em cima do teu rosto. tiras aquele peso grotesco de cima de ti. olhas em volta. sentas-te no chão. olhas para o seu corpo e para a arma. talvez chores. talvez não chores. afinal de contas és tu que estás vivo. e só quem está vivo é que pode chorar. a guerra hás-de ser tu a ganhá-la. já não precisas que te esfreguem a vitória nos olhos. além disso o mundo está cheio de cães. de pessoas que tentam sair de casa. de pessoas que lutam com a fome. e quem não perceber isso. é uma múmia perdida no caos.

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