segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

e pronto, acabou-se. e agora? agora arregaçar as mangas, limpar as armas, preparar a luta.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

poema

nas montanhas mais altas do teu pensamento
nasce um rio
uma música suave e harmoniosa
vai descendo as montanhas e lavando a terra
é negra a terra
tornou-se magicamente fértil
vive-se nela sem ecos do passado
sem monstros vestidos de futuro
dança-se aí ao ritmo do vento
crianças irrequietas
talvez as tuas mãos
transformadas em quente
que foram um dia pássaros citadinos
nessas montanhas do teu pensamento de fogo
há um rio que corre e corre e corre
sem parar nunca
um rio que tudo lava e tudo leva
que é o lugar perfeito para deitar cartas
cartas que ardem na tua água pura
hei-de afogar-me silencioso dentro de ti
se descobrir onde escondes a tua porta
já sei que nasceste um dia
e isso me basta para que o mundo siga
para que o sol me brilhe
mesmo que não estejas a meu lado nas manhãs absurdas da vida
quando abro os olhos e vejo o céu de cinza
que tudo cobre que é obscuro
bebo a água fresca do mundo
tu tornas-te na água que me atravessa
eu sinto-te em mim
fresca água límpida pela boca
ah afogar-me
ah beber-te
acordar depois das noites de silêncio
acordar nas manhãs de ruído
onde estás?
voltarás?
que nome tens agora?
já não tenho asas
e quando a fome me revolve por dentro
eu insisto nela até que me doa
e só assim me sinto

banda sonora dos dias

sábado, 12 de dezembro de 2009

dúvidas do momento. fragmentos de teoria.

era demasiado fácil reconhecer o falhanço de uma impossibilidade, mesmo sendo ela o objectivo máximo que suportava toda a teoria, explicando melhor: mesmo sendo a utopia impossível é sempre ela quem define o rumo, ou, infelizmente, deveria ser. havia um teatro feito de madeira em que corria a seiva da vida última, carregado que estaria o palco com a intensidade mais brutal de todas, a intensidade do momento pré-morte, desde que consciente de si, um momento de lavagem final, de despedida, de passagem (nada de misticismos, quando morremos tornamo-nos pó e dissolvemo-nos no cosmos). acreditava eu que o teatro era essa zona de passagem real, a passagem que dava sentido à vida, uma espécie de meta-geometria, em que os actores, quais corpos comunicantes em vigília, ultrapassavam a dimensão da simples realidade. dois momentos marcantes nesse trabalho: um primeiro olhar, imediatamente a seguir ao nascimento, a magia da surpresa absoluta, o humano total, a máscara neutra pura; um outro olhar, último, o instante ínfimo antes da morte, o olhar da consciência sobre a vida, a certeza do corpo, a máscara menos neutra de todas, o corpo com vícios. dominava assim na teoria dois momentos: o nascimento que ligava ao corpo e a morte que identificava com a consciência.
momento actual e problema: a tal meta-geometria funciona quando se trata de colocar vários actores num palco, mas e quando se trata de um monólogo? num monólogo a questão do espaço palco, embora se trate de uma questão fundamental, passa inevitavelmente para segundo plano, o espaço de um monólogo é, acima de tudo, um espaço interpretativo. como fazer um monólogo sem que a contra-cena com o público seja num registo confessional ou sem que o personagem actor fale apenas consigo mesmo? tem de criar-se um compromisso. como se faz o argumento de um monólogo? o argumento de um monólogo será apenas um actor que espera o público e que o desanca com informação? pode haver acontecimentos num monólogo? acontecimentos não é uma palavra boa para aqui, claro que pode haver acontecimentos, mas acontecimentos história, em que o público quase que entre num local em que apanhe um bocado real da vida, como que por acaso, e que esse personagem, como que por acaso, sabe que está a ser observado... mas insiste no seguimento da vida como se nada fosse.
como escrever um monólogo que não se fique pela confissão?
como encenar um monólogo?
como trabalhar apenas com um actor?
qual o papel de um encenador num monólogo?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

não se escreve aqui porque:

se escreve noutro lugar. estou de volta de um monólogo que quero ter acabado antes do fim do ano. se escrever para aqui... perco-me daquilo e não me apetece nada fazer isso. ando a usar demasiado a escrita como um escape e estou farto disso. preciso de escrever consistente. preciso de criar coisas. de qualquer forma, tenho uns textos na cabeça para aqui enfiar. de certeza que serão terríveis!!!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

como se o amanhã fosse eterno. dizia-me: não vás. e assim se prendia o sonho por mais umas horas. mas o sonho não pode ser agarrado. nem o amanhã é eterno. e eu ia.
tinha uma vida cheia de acontecimentos. todos eles marcantes. uma vida de superfícies planas. sem qualquer tipo de contúdos. sabia de tudo o que se passava no mundo. tudo lhe passeava debaixo dos olhos como se de um desfile se tratasse. era um homem solitário. constantemente acompanhado por um entra e sai de gente anónima e ao mesmo tempo habitual, conhecidos do dia a dia, clientes desejosos de saber as últimas, os horrores frescos que acompanham o café e a família. uma vida de letras grandes. mergulhado que vivia no cheiro de tinta e de papel. de revistas e de jornais. de tabaco. canetas. lápis. coisas. marroquinarias que serviam de prendas de última hora para os desastrados, para os que na verdade não ligavam aos laços, para os que na verdade se esqueciam do outro. ele vivia ali. numa loja sombria e um pouco húmida. no meio dos jornais. nacionais e internacionais. diários. semanários. de boa qualidade uns. pasquins do fogo de artifício outros. sabia todos os títulos de memória desde o primeiro dia. todos não. alguns já se lhe escapavam. havia uns que eram mais explosivos. outros nem tanto. dias com mais ou menos acção. às vezes os clientes metiam conversa sobre os assuntos e ele, com a sua vergonha nobre, lançava um título ou outro como que a explicar o desenvolvimento do acontecimento em si, a história do mundo em letras gordas, em capas, em imagens. títulos que desfilavam debaixo dos seus olhos, frases marcantes, tantas e tantas emoções retratadas dentro do seu mundo de papel. ao fim do dia o nada. a chegada a casa já não tinha qualquer significado. tirava a roupa. vestia o seu pijama velho. comia uma sopa e um bocado de pão. deitava-se. estava o dia ganho ou perdido, dependendo da perspectiva. de manhã cedo. uma espécie de labuta habitual. café. sair de casa muito cedo para arrumar a banca. para ordenar os jornais do dia na sua forma já habitual e demasiado rotineira. mais um dia. casa no fim. cama. manhã. por vezes parava no café da esquina para beber um copo e ouvir umas conversas, por vezes para além de beber esse copo e ouvir essas conversas ainda fazia sinal à senhora para subir ao quartinho, como ela lhe chamava. precisava desses rasgos na sua vida. estava demasiado conformado com o seu dar para que pudesse abandonar esse pequeno vício, estava demasiado metido nos dias, nas pessoas, nos pedidos, no mundo em farrapos que não compreendia, nem queria, quem quer afinal compreender o mundo? era um sábado de tarde. ao sábado sempre fechava na hora de almoço, estava convencionado assim, o negócio ao sábado fazia-se de manhã, com os senhores que iam para os cafés, que se punham em posições exibicionistas, cambada de incapazes, reis de nada, pediam o jornal com a sua arrogância do saber, chegavam ao café central da cidade e aí se punham, altivos, como se de um trono se tratasse, como se alguém os visse, como se não fossem eles que observassem os outros, enfim... adiante, cada geração sabe de si, cada geração projecta-se no mundo com os dados que possui. era um sábado. estava na hora do almoço. ao sábado dava sempre um pequeno passeio pela cidade, um pequeno passeio porque a cidade era pequena, normalmente almoçava um bocado de pão com conduto no banco do jardim municipal, depois tomava um café no central, apanhava o regresso dos senhores já de barriga cheia, depois do tão familiar almoço de sábado. nesse dia, sem saber porquê deixou-se ficar pelo central. pediu um copo. depois pediu outro. depois outro. e outro. e outro. já o empregado o olhava de lado quando pediu ainda outro. pagou. saiu para a rua mas ia já cambaleante. era a hora do passeio pela cidade. passou pelo jardim como que à procura de alívio para o tempo. os velhos. com os seus jogos e as suas conversas, aguardado a morte passivamente mas vestidos de acção. tudo aquilo o aborrecia tremendamente. passou pelo jardim como um tiro que se suspende mas que logo segue a sua marcha veloz em direcção ao alvo, pena que não fosse o infinito. nesse dia tudo o aborrecia. ao mesmo tempo que via tudo um pouco turvo pelo efeito da bebida. tudo o aborrecia mas tudo estava diferente, a cidade estava mergulhada no nevoeiro da embriaguez, tudo na sua cabeça. saiu do jardim e foi até ao café da esquina. pediu mais um copo. ouviu as conversas. olhou para a senhora e pensou no quartinho. para quê? bebeu o copo lentamente. meditava. pensava ansiosamente na senhora. nunca compreendeu o porquê de ir sempre com a senhora e com nenhuma das miúdas novas que estavam do outro lado da rua. era assim. talvez ela o compreendesse. talvez a solidão dela fosse ainda mais terrível do que a sua. os seus encontros eram sempre iguais. mecânicos. ele fazia-lhe sinal. ela saía. ele ia atrás dela. entravam numa porta ao lado do café da esquina. subiam ao quartinho. ela tirava a roupa. ele tirava a roupa. ela deitava-se. ele deitava-se. punha-se nela. explodia nela. vestia-se. deixava o dinheiro na mesa de cabeceira enquanto ela não o olhava. despedia-se. ia para casa. tinha um certo pudor em tocar na senhora. não se punha nela com violência nem com delicadeza. era um acordo. algo necessário. era físico. nesse dia, ela parecia-lhe extremamente bela, no meio daquele aborrecimento geral do mundo, a senhora tinha uma aparência de anjo translúcido e puro, cristalino, que tinha a marca da salvação escrita no seu corpo. fez-lhe um sinal, mas desta vez, foi um estranho sinal de vergonha, ela saiu, ele foi atrás dela. subiram ao quartinho. ela despiu-se. ele não. sentou-se na cama. disse-lhe: pode abraçar-me? ela sem uma palavra abraçou-o. ali estiveram uns segundos com o valor da eternidade. ele chorou sobre os braços dela. levantou-se. procurou o desviar dos olhos da senhora para deixar o dinheiro na mesa de cabeceira. mas ela não tirava os olhos dele. a senhora disse-lhe: hoje não quero dinheiro leve-me a jantar. ele limpou as lágrimas. disse-lhe: claro que sim passo depois a buscá-la pode ser? ela respondeu: claro que sim fico à sua espera. ele saiu. ainda era muito cedo. não tinha para onde ir. foi até casa. entrou. sentou-se. bebeu água. a bebida começava a desaparecer. sentia um vazio tão grande dentro de si. começava a aborrecer-se. decidiu ir à loja. abriu a porta e entrou no seu mundo. o seu mundo de sempre. o seu aborrecimento de sempre. abriu um pacote de tabaco e fumou um cigarro. soube-lhe mal. sentou-se num banco. olhou para as revistas penduradas nas paredes, para os jornais já do passado, sentiu uma profunda melancolia. e a senhora que teria de levar para jantar. teria de conversar. os jornais e os seus títulos gigantes e gordos. a melancolia. a senhora. a maldita ressaca que lhe provocava securas na boca e ardores no estômago. o vazio. o seu mundo sem perspectivas. começa a chorar como um rio em erupção. rasga papeis. parte o balcão. esfrega os papeis no seu corpo como num acto de amor próprio. pensa na senhora. na senhora que o espera. nas mãos dos outros que tocam na senhora. nos outros que se correm dentro da senhora. como num flash de tempo deita fogo ao espólio do mundo. tudo arde em labaredas coloridas com os químicos dos jornais, as quinquilharias derretem, o tabaco queima-se, tudo arde à sua volta, ele chora, tudo arde, a loja arde, o ar arde. a senhora espera. a senhora espera.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009


uma vez meti aqui esta por uma pausa anunciada. hoje volto a ela por um regresso.

domingo, 29 de novembro de 2009

e pronto. estreia. como um copo de vidro. não deixo mais isto. está decidido. nada que me prenda os pés. é necessário voar para que não se bata no chão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

homenagem do dia: aldous huxley

domingo, 22 de novembro de 2009

apontamento

é provável que pensasse demasiado na palavra suicídio. não um suicídio no real, não um suicídio no corpo. um suicídio em que viria o silêncio absoluto. um suicídio passagem. ritual. sem sangue derramado e sem violência. como se houvesse algo mais violento do que o silêncio, quando se anda pela noite debaixo de chuva e se chega a casa mergulhado em solidões de ferro, solidões que são portas pesadas que separam a carne da vida. gostava de escrever sobre as pessoas. mas para isso teria de poder conhecer as pessoas. teria de entrar nelas. partir delas para o papel. as pessoas são enigmas. são vícios. são feridas. é preciso anular as pessoas para se poder escrever. as pessoas aparecem depois. talvez se revejam nas palavras, talvez abominem as conjugações de palavras e os verbos e os sentidos de um texto livro. os verdadeiros livros acabam por ser contra as pessoas, não por serem contra as pessoas, mas por construirem anti-pessoas, por serem pessoas codificadas, demasiado perfeitas ou demasiado irreais para que sejam possíveis. a literatura é sobre monstros. o teatro é sobre sentidos. a arte tem de esquecer. as pessoas têm de esquecer. o esquecimento é a única questão válida para a sobrevivênia. daí vem, talvez, o fascínio pelo suicídio. já devo ter atirado com a palavra esquecimento demasiadas vezes à cara. podemos esquecer-nos de tudo o que é exterior a nós menos do que se torna físico. as pessoas são ruínas. cada vez acredito mais nisto. cada um transporta a sua ruína. o seu segredo. a sua solidão. o seu silêncio. a sua angústia secreta. certo dia falava de uma ruptura. não sabia o que dizer. estava demasiado incrédulo para dizer o que quer que fosse. tentei palavras de conforto mas eram inúteis. claro. não há conforto para rupturas. para rupturas só o suicídio. é preciso deixar de ser um eu para se tornar num eu outro. é a única forma de sobreviver. é o esquecimento. as pessoas passam a maior parte do tempo a agir com interesses que nada tocam no sentido humano. porquê? por uma questão de traição delas mesmas. é um olhar sobre si e outro sobre o interesse abstracto na sobrevivência. não existe o outro na cabeça. o outro é a vantagem. o outro é o caminho ou o processo. o outro é a incapacidade de resolução do indivíduo solitário. é a crença limite no prazer e no interesse. é a morte total da salvação do mundo. escrever sobre o inumano. sobre a desumanidade. sobre fracturas que estejam tão expostas que se revelem de uma força tremenda. sobre o osso. cada vez me vejo mais mergulhado no perigo do ser errante. como se nada prendesse ou criasse laços. escrever sobre o mais rasteiro de tudo para chegar a uma nova revelação do espírito. nadar na merda. só quem conhece a falta pode falar sobre a falta. chega de apetites burgueses sobre o sofrimento alheio. comparações sobre quem está na margem. eu estou na margem. eu estou na margem. eu hei-de estar na margem até que as pedras digam o meu nome. pedras tumulares. falcatruas. nós não fomos feitos para morrer. fomos feitos para viver. sai-se para a rua e observa-se. caminhantes opacos. mirando vidros que prometem felicidade. chegam a casa e comem. deitam-se. fodem. amanhã é outro dia. compromisso nenhum. outros invejam a vida perfeita que estes possuem. mas não possuem nada. a vida que têm não é sua. é um sonho que lhes enfiaram na cabeça. construiram impérios a partir de pressupostos errados. escravos. violência. aparência. saem de casa com um sentimento altivo em relação aos que os rodeiam e depois voltam para casa com a cabeça cheia de mediocridade. latente. sem princípios. mortos sem sepultura. meios mortos. meios vivos. suicidados à nascença. iludidos com o poder. económico. social. obesos. pessoas cães. fugir a esse público. ratos políticos da vida. com palmadinhas nas costas que trazem num saco sem fundo. eu não sou o que sou. eu não sou o que sou. eu tenho esta arma chamada viagem. este vírus chamado vida. que me corrompe os dias e as noites. que me deixa aberto a solidões. que me leva para pontos em que eu não quero mais estar. há-de vir o dia. há-de vir o dia. onde estão agora as vozes? onde estou eu agora? onde? enfiadas em cabeças. deitadas sob a chuva numa rua qualquer. num esgoto da cidade obscura. cidade sem luz e tão cheia de lâmpadas. cidade onde o nojo se funde com o padrão perfeito da beleza. cidade merda. pesoas merda. eu. eu que rastejo nos antros obesos das coisas. nos antros gordurosos da vida. e vem o fogo e a água. e vem o fim. e há-de vir aquele que não nascerá para morrer. chamar-se-à silêncio. terá o rosto da morte. terá o cheiro da guerra.
descobri na escrita esse acto compulsivo que era necessário para substituir as pessoas. não fiquei feliz com isso. deitei fora imensos cadernos, cheios de frases enigmas que eu não queria entender. o mundo estava cheio de escritores que falavam por mim e eu podia deixar-me ir na corrente da solidão, passivo e silencioso. um nada vazio e impenetrável com uma voz desconhecida. um lugar em que o poder se quebrava, para sempre revoltado, com quem? com o sangue e a fome.

sábado, 21 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

era uma divisão de paredes comidas por uma humidade constante e com marcas de uma longa exposição ao tempo, uma luz branca que tornava o ambiente demasiado frio para que fosse confortável e que, ao mesmo tempo, dava uma luz exagerada e mostrava todas as cicatrizes das paredes e dos móveis. a decoração era mínima, velha, gasta, com um gosto bastante duvidoso, quase que descuidado. um candeeiro demasiado novo que contrastava com a estética envolvente. estética? sim, havia uma estética ali por muito estranha que fosse, notavam-se ali os vícios e os hábitos de quem habitava aquele cubículo bafiento, saturado de tabaco e de odores de corpo. no centro estava a cama. uma cama de casal feita de madeira já pouco envernizada, uma cama rangente, encostada à parede pela cabeceira, ao lado uma cadeira que servia de mesa, com um relógio e um pacote de lenços, com uma garrafa de água vazia, tombada, lixo que por descuido ali tinha ficado nalguma noite ou nalgum dia e que já parecia demasiado parte do mobiliário para que fosse deitado fora. a cama ocupava ali uma posição central naquele quarto, trono de algum rei em decadência, rei sem reino, rei vagabundo, provavelmente atirado para canto depois de perdido o esplendor da carne. a cama tinha uma colcha em tons de verde. por cima da cabeceira, na parede, um mapa do mundo, que deve ter sido palco de sonhos, sonhos de fugas e de viagens irrealizáveis, sonhos de dias de sol, de países perfeitos, de sistemas infalíveis. um mapa que permitia o sonho e que era da mesma forma a consciência certeira do lugar e da impossibilidade em que o reino tinha caído. chamava-se louise. tinha fugido da casa dos pais durante a adolescência. cansada das limitações da província, de não poder enxergar com a vista mais do que uns míseros palmos de futuro, cansada de se ajoelhar em igrejas por uma obrigação maior e totalmente falsa, uma obrigação que os outros pareciam criar-lhe, para bem, diziam, da salvação, como se a salvação maior não fosse a terrena. louise. o seu nome primeiro não era esse. nome já esquecido. tinha-se dado esse a si mesma na sua viagem iniciática, como se um nome novo fosse uma outra vida, um novo baptismo, também ele religioso mas de uma religião nova, única, uma religião de que louise era a única seguidora, pastora e rebanho de si mesma. nunca mais soube dos pais, não queria, tinha aquele crime que é feito de vergonha e orgulho metido na sua cabeça de mulher, além disso, podiam já estar mortos. os pais morrem quando ignoram os filhos. os pais não têm morte física, o mundo não lhes deu essa possibilidade quando criou os laços de sangue. louise estava velha. sentada naquele quarto, numa poltrona de um requinte decadente, com o seu corpo usado, estava pequena, mirrada, pássaro de ossos e pele, uma imagem faustiana, com o conhecimento mas sem a alma, o problema era que o seu diabo era um ser imaterial, um grito na terra. louise tinha mãos de aristocrata, amarelecidas pelo tabaco e pela vida mas mantendo o lado esguio e inútil desses seres de ninguém vestidos de burguesia. tinha tentado o destino. revoltada com sentido amargo. conformada o suficiente com a fraqueza da vida para se acomodar à sua situação de vazio. no início da sua segunda vida tinha uma mala de sonhos e uma de roupa que não usaria nunca mais. tinha juntado uns dinheiros para uma sobrevivência inicial. mas a cidade pode deslumbrar os espíritos inquietos e louise era dos espíritos que têm esse chamamento da vida, a disponibilidade total para embarcar no absoluto das coisas, a crença desinteressada no outro. acabou por se perder. embalada por canções distantes. nos meios ardilosos do crime. o corpo por menos de nada. a vida por ainda menos do que isso. sem poder de resposta, ali estava ela, com o tempo sobre si, numa poltrona decadente num quarto, único espectador da ruína, espectador passivo, impotente perante a violência maior, corpo vendido, corpo pisado, maltratado a troco de fome, miséria total. louise, a santa, a velha com pouca idade, magra e delicada, com o olhar de quem conhece a vida por dentro, a vida em todos os cantos de si mesma. sentada ali. atirada pelo mundo, qual saco de despojos. guerreira de nenhuma guerra, uma lágrima silenciosa cai-lhe no rosto, ela não a limpa, deixa-a escorrer até à boca, sorve-a, sente o sabor salgado da sua infelicidade, levanta-se da sua posição. levanta-se e anda. lázaro bíblico. o corpo tremente mas estranhamente digno. dirige-se à varanda. afasta as cortinas vermelhas como quem abre o teatro do mundo e se prepara para o espectáculo. sorve o ar com sofreguidão. olha o céu com o desejo infinito de voar. digna e sem alma. perto do céu. unificada com a terra. sobe o gradeamento verde de ferro da sua varanda, salta. como um santo cai do seu altar último. até tocar no chão.

atenção


Otelo, de Shakespeare, encenação de Kuniaki Ida, produção do Teatro do Bolhão, estreia 28 de Novembro!!! falta uma semana.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

banda sonora dos dias

homenagem a godard

desabafo

uma barba sem bigode é como um bigode sem barba.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

homenagem a bergman











banda sonora dos dias

a mudança do rosto. flores que nascem sobre a terra. húmida. planícies de batalhas. campos em que a morte se espalha. o rosto desfigurado da guerra. depois da guerra. o rosto quebrado da desolação. era um homem e uma mulher. um dia os abismos cairam na terra. entre eles. os sonhos desfeitos. a consciência eterna do fim. e o rosto. esse na sua apresentação funesta. desconectando realidades. outras falcatruas. outras feridas. e ele dança sobre a vida como se o amanhã fosse irreal. e ela que chama a realidade palpável das coisas. ele que não escuta. são corpos cicatrizes. aberturas profundas na terra. caminhos. sulcos. erupções. era um homem e uma mulher. eram o quê? o vento sobre o pó. cinzas. animais em chamas correndo por montanhas de chuva. líquida a terra. líquido o corpo. desfeitas as conjunções. pecado. crime. mentira. a loucura da impossibilidade tocando as mãos religiosamente brancas. pára com os advérbios. que fazes tu agora? mero corpo incolor nas ruas de ninguém. quem te toca? quem te embala? hás-de vir depois do vento e sobre a tempestade como se viesses da guerra. já não te reconheço e tu és eu. quem és tu? estás como que deitado numa caixa obscura. casulos da vida. larvas da vida. sem alimento nos dias e nas noites. onde te encontras? corpo. onde estás? para que lado? qual a saída? a guerra fechou a porta e já não podes subir ao branco. à luz. depois da cinza a água que limpará o segredo. o túnel aí tão perto que lhe podes tocar. mas cuidado. ele faz com que a matéria desapareça. como se fosse um crime sentir o sangue derrotado. como se fosse um crime abjecto entregar as mãos. como se fosse um erro despedir-me do que não quero. há-de vir o tempo. espera-se a um canto até que a voz me chame. a minha voz me chame.

banda sonora dos dias

terça-feira, 17 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

homenagem a jean genet





tinha plena consciência da merda em que me estava a afundar. no meio de uma densa obscuridade esse era o meu único pensamento de clareza sem limites. a afundar-me na merda. com cada vez menos saídas. a frustrar conscientemente os objectivos. como se o meu dever fosse falhar. lá está aqui o sentido do crime que se perpetua por dentro, um crime que é um engano. em pequeno fascinavam-me os golpes, atingiam uma dimensão poética que contrastava com o meu casulo mínimo. sonhei demasiado alto, houve um dia em que as palavras me visitaram com um ritmo nocturno, demasiado tarde, estava contada a história, o fascínio do registo da queda, o documento da queda em tempo real, que é ao mesmo tempo prisão e liberdade. voei demasiado alto na minha noite, no meu quarto, enquanto sonhava amores perdidos, as coisas gigantes da poesia. mas o mundo não tinha poesia, e se a tinha, certamente que não era a que eu queria. uma poesia de outros, tornada lugar absoluto, em que os livros eram objectos mais do que sagrados. era tarde para outras funções, estaria para sempre afastado da norma, era um corpo sem lei. e depois o amor, a expressão maior do mundo, purificado no sangue, atirado às pedras como um ser suicida. lá me ia eu esquecendo de mim enquanto me fechava cada vez mais no meu dentro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

e depois chegou-me o momento de não me poder diferenciar de um criminoso. era uma condição que me parecia natural, era um chamamento, uma coisa que deve ter-se desenvolvido comigo até ter chegado a um momento em que eu teria de aceitar o que vivia para poder seguir. talvez daqui venha o problema, em muitos casos é o carrasco quem corta a sua própria cabeça. e a morte é amante da cobardia. eu tinha a vida que não podia ter. que me estava vedada por uma questão de sangue e necessidade. o que se passou foi que numa conjuntura específica do tempo, o mundo inventou um monstro, e esse monstro sou eu, a minha luta é comigo. há muitos monstros neste mundo mas nem todos se apontam as armas. isto não é um orgulho. isto é um trabalho. de repente comecei a reparar que tinha uma bomba nas mãos e, essa bomba, estava para sempre soldada a mim. por vezes apareciam anjos e a bomba era como que esquecida, mas os anjos voltam sempre para o seu céu, e a bomba lá voltava dando sinais de existência. o processo sempre foi demasiado simples, é do nascimento até à morte. uns preocupam-se com os pontos, outros com o que está entre eles, outros com o que está entre eles e neles mesmos, outros só com um, o ponto último, esse é o meu caso, tenho a vida por resolver, até à morte, esse lugar.
se ganhasse muito dinheiro iria plantar tâmaras para a Tunísia. o Carvalhal é o novo treinador do meu clube, todo eu estou apreensivo em relação a este assunto!!! falta pouco mais de uma semana para a estreia. tenho saudades de coisas. preciso de fazer textos meus. preciso de trabalhar mais conscientemente para mim. tenho de escrever mais e melhor. preciso de um guarda-chuva. o tempo aqui é horrível. já li tudo o que aqui tinha. quero ler O HOMEM SEM QUALIDADES do Robert Musil. não estou habituado a ter tanto tempo. é uma seca. preciso de livros. preciso de fazer teatro. preciso de voltar a aprender o corpo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

banda sonora dos dias. o criador recorrente.

apontamento

é a selva. andam palavras pelo ar em forma de gritos monstros. selva. como se as palavras só comessem os corpos presos. espaço aberto mas tão cerrado com violência que se torna irreal. é um sentir frio, frágil, o mergulho que se espera para o obscuro. ir e voltar. uns olhos do outro lado, fixos na perversidade. corpo objecto talvez abjecto. tempo para crescer depois da morte que foi o exílio. exílio? não se pode chamar isso a uma fuga da vida. o exílio é homicida e a fuga é suicida. ainda que as separações absolutas só existam nos livros e na cabeça dos outros. de dentro para fora. é agora que se escreve a palavra merda. merda.
chegou-te a noite a casa. qual noite? qual casa? um corpo e um saco. meia dúzia de sonhos obscuros, a noite. há insectos que se arrastam no chão. estás na rua. um buraco. duas cadeiras. sentas-te numa mas ninguém chega. saltas directo da cadeira para o solo frio e húmido da noite. afinal é noite. o teu problema é a casa. estás então deitado na terra. o ouvido colado a ela. um pulsar. um grito de dentro do mundo que nunca tinhas escutado. demasiado tempo à espera. na tua noite sem casa sentado numa das duas cadeiras e à espera. o grito da terra fria da noite massacra-te agora a cabeça. podes sempre meter o teu corpo no saco. saco abrigo. corpo bunker. soterrado pelas explosões da metafísica mentira. cala-te. silêncio. que o pulsar do mundo te atravesse essa tua cabeça de miséria. és um ser doente. não há casa possível para ti num mundo que não tem treva. nem guerra. nem outra forma física de falcatrua. adeus.
"O homem que aprende a saber de onde vem pode maravilhar-se por ser o que é, ou então, recordando as distorções que sofreu, ceder a um desencanto que o imobilizará, a menos que, à maneira de Nietzsche, se valha do humor genealógico ou da desenvoltura dos jogos críticos."

BLANCHOT, Maurice; Foucault como o imagino

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

banda sonora dos dias.

banda sonora dos dias.

Amanda Palmer: Exit Music (for a Film) by Radiohead from shoottheplayer.com on Vimeo.

um homem fala da violência que não tem para justificar a violência que gostaria de ter.
cidades.
pessoas de papel.
- aproximas-te do fim a uma velocidade de vertigem. é o chão quem te chama. espécie de queda ou doença. espécie de coisa de dimensão interna, estranha e invisível. corpo de ossos. desorganizado. máquina de zeros.
- sou um parasita do tempo. é isso.
- provavelmente nulo. sabendo o que és e o que fazes tens tudo para a resolução.
- resolução, revolução, neblina no olhar, boca em chamas. o que sei sei. o que sei é um pensamento enfermo, atirado para um covil de imagens selvagens, pesadelos. o fumo compulsivo de noites silenciosas. esboço de corpo.
- perdes o tempo com ideias. máscaras.
- é onde me ganho. tornei-me no rei do meu pensamento. talvez tenha definhado por fora. já não reconheço quem sou, o que sou.
- a verdade é que não és nada.
- a verdade... a verdade começa sempre com a expressão: era uma vez...
- é uma verdade histórica. um registo.
- o que são as coisas senão verdades mal contadas? ilusões tornadas factos? feridas tornadas bandeiras? vida tornada morte?
cerimónia. o quase morto está deitado numa quase cama. sangra com um ritmo de alucinação. o seu sangue salta da barriga em direcção ao tecto. fonte vermelha. torrente interminável. em volta do quase morto estão familiares, amigos, desconhecidos e outros corpos de plástico. todos deixam cair lágrimas, mesmo os de plástico. a cena é perfeita esteticamente e apresenta a mais absoluta de todas as simetrias. uma música paira no ar. é do estilo clássico, claro. por vezes o quase morto lança uns sons de sofrimento profundo e como reacção todos os presentes soltam os maiores rios de lágrimas que lhes é possível, mesmo os de plástico. a música insiste-se, repete-se, espécie de mantra. é uma cena matemática. aqui não existe tempo. a cerimónia da quase morte é infinita. o sangue e as lágrimas recusam o seu fim. o quase morto rodeado de quase vivos e de corpos de plástico, inseridos na mais absurda bolha do universo, um buraco negro que suga eternamente o sofrimento irreal de seres estáticos, estéticos, com fluxos cerimoniais. só na morte verdadeira voltarei a falar de respiração. ainda espero a luz que me visite estas imagens. lá fora está o tempo. quieto.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

Come To Daddy (Director's Cut) by Aphex Twin from aka anuar on Vimeo.

banda sonora dos dias

Seven from Fever Ray on Vimeo.

- pensava que tinha perdido tudo, meu caro.
- e perdi, não sei porquê o tom de dúvida.
- vejo-o de pé. parece saudável.
- a doença que tenho é invisível.
- e que lhe faz ela, a doença?
- come a minha vida devagar.
- como assim, come?
- é uma espécie de cancro no espírito que me puxa para baixo. uma doença explosiva. não me larga, a doença, obriga-me a viver.
- nada o pode obrigar a viver.
- há uma coisa que sim.
- o quê?
- a cobardia.
- costuma pensar muito em suicídio?
- constantemente. não em suicídio rápido. antes esta forma de morte prolongada. perpetuar o sofrimento para chegar à explosão.
- a sua doença caminha intensificando-se...
- claro, é uma doença progressiva, hei-de ficar tão frágil que terei de rastejar.
- e a cura?
- já lhe disse, sou cobarde.
uma velha dá comida a pombas e enxota as gaivotas. sentido humano: no meio de toda a merda em que se vive, a respiração torna-se estranhamente selectiva. ruptura com isto tudo. tornei-me num pedaço de chão.
vais no caminho para casa. são os silêncios do costume. há pensamentos loucos. a estranha voz interna da auto-mentira. exterior: não há luz. tudo está misteriosamente escuro, vou dizer que tudo está precipitadamente morto. ninguém. pensamento que grita. são suicídios, são revisitações abstractas do tempo, alojadas sobre os ombros, as costas atiradas para a terra. um ritual último. uma cerimónia de regresso. escadas que descem, obscuras no seu fumo. cabeça voadora, separada do corpo, pendurada na corda, dentro da água. voz fracturada. coleccionador de venenos. eu sou o desconhecedor de sentidos. um rei de nenhum reino. vais no caminho para casa. silêncios. paisagem desolada por uma projecção da carne, do sangue, do meu coração. está frio à minha volta. estarei perto de um qualquer fim. mergulho.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

era uma palavra que se proclamava a si mesma. um lugar depois do grito. o meu nome. como saído de uma boca com a inocência da primeira vez. acabado de nascer e já demasiado perto da morte. maldita infância. este terror insuportável das famílias como estilhaços. o pai morto. fantasmas de uma cólera inexplicável. descrição da infância: portas fechadas mas constantemente arrombadas, gritos, uma paisagem absurda de violência que se espalhou pelo tempo. ter a casa noutra terra. voltar sempre à cinza, casa queimada, corpos em fogo. daí vêm as palavras limitadas. falcatrua imensa na cabeça infantil. braços. pernas. corpo entalado entre a mesa e a máquina de lavar. sai daqui homem.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

subiam as águas alagando a terra
corpo antes áspero agora dissolvido
húmus resto da animalidade compacta
língua de miséria afogamento insecto
homicida e suicida na deriva ninguém
necessário virar para o dentro dizem as vozes
a convulsão da natureza chuva ritmos
alucinação física do mundo inquietante
corpo sem cabeça água exagero de palavras
bebedeira vazio bola boca silêncio
dentes na carne sangue palavras duras
terra revelando a insignificância da vida
antes era o deserto explosão agora pântano
ó maldita idade amarga que tudo cobres
obscuro o sentir carne rasgada terra
artifício ou viagem gente massa anonimato
silêncio absurdo que te traz a arma
arma absoluta com a direcção do crime
certeiro eficaz plástico virado para dentro

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

dias normais numa solidão que apanha a cabeça de uma forma estranha. ontem fui ao teatro, solitário. hoje fui ao Cunha, solitário. amanhã será outro dia, provavelmente solitário. uma seca. necessidade urgente de inventar projectos para ocupar o tempo. para ocupar o tempo e por uma necessidade de voltar a funcionar. ando com o corpo emperrado. e mesmo a cabeça está sem linguagem. foi demasiado tempo longe das tábuas. demasiado. estas coisas são físicas. aqui fica o desabafo. preciso de falar de vez em quando. chamem-me egoísta se quiserem.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

tenho andado a escrever em cadernos... por isso é que não meto aqui muita coisa... e também como não tenho internet muito regular... enfim... desculpai-me!!!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

é um fragmento de vida carne dentro
respiração desaparecida na sombra tua
impossível lavar as mãos o olhar vítreo
incêndios e paredes caídas sobre o corpo

um dia vinham músicas distantes era o vento
trazia a voz secreta uma arma louca
os cenários palpáveis futuro de brilho
pés descalços olhos ruína uma barreira

corpos amontoados formando ferrugem
chegou e levou a luz silêncios ó maravilhas
despidas cruas sangrentas unhas

um outro lado do mundo tornado a queda
irmãos de sangue escorraçados viagens
terás cabelos de fogo minha boca ferida

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

e é o esqueleto que se sente demasiado apertado. o ar que falta. falta porque não sai. não renova. apodrece dentro. talvez no fundo de tudo a verdade seja apenas uma: não sabes fazer. e este fazer tantas e tantas vezes se confunde com o verbo da vida que já vais perdendo o rumo no simples caminhar. e o ar que se recusa a sair. se morres o ar sai através de ti. o ar foge-te. tens neste momento o ar prisioneiro na tua caixa forte. guardas aí muitas coisas. esse ar pestilento da tua vida vai enchendo as memórias de ferrugem. é uma espécie de guerra. é um amontoado de pó. pó de ossos. membros fragmentários. cabeça voadora e sem pensamento. lavagem. cidade cinza. solitários. lá vão eles em desfiles. claro que nem tudo é dor. também há sempre a ilusão desilusão da vida. aquela que te embala sonhos intermináveis só para te acordar. sempre para te acordar. chuva na janela. no tecto. escorre pelas paredes de dentro. inunda-te a casa. casa. casa. a casa que não tens.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

desabafo do regresso ao teatro

pois então todo este tempo só ajudou a que um gajo ficasse perro. é voltar atrás. devo estar neste momento muito perto daquilo que se pode considerar um amador. fogo. tenho de dar a volta a isto. estou contente mas cheio de cagufa, claro... quem pensa que é como andar de bicicleta que a tire da chuva, não é mesmo nada assim... claro que ainda é cedo e quero fazer o espectáculo da minha vida, cada um como se fosse o último. disto não posso desistir. era o que mais me faltava. lutar pela vida. lutar pela vida. descobrir o sentido para o que se faz. é o que se me passa na cabeça agora. descobrir um sentido. preciso de voltar a ter método.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

as folhas são demasiado grandes para a vida que temos. o dentro e o fora confundidos. deste-me um beijo. o beijo do tempo. senti-me alheio. alheio a mim.
a fase é lacrimejante. fase de fumo.
cheguei à cidade cinza.

domingo, 27 de setembro de 2009

os meus mais sinceros desejos a este governo ou a outro qualquer.

banda sonora dos dias

a preparar as coisas e a cabeça. está quase quase. finalmente vou trabalhar num espectáculo com este encenador. estou curioso com tudo. é uma espécie de recomeçar. como sempre o é. embora este seja um estranho recomeçar. é o tempo da distância. ando a escrever estas coisas para me fazer ver. passaram dois anos desde a última produção em que entrei. passou um ano desde a última vez que pisei um palco. estas coisas têm o seu peso. estou provavelmente muito mais velho do que estava antes. digo velho de cabeça. embora já não esteja saturado. e até me considero muito mais aberto, se assim se pode dizer. tenho saudades das tábuas do palco. do palco preto. de chegar a casa lixado e com o problema nas mãos. tenho mesmo. e depois há uma coisa que é brutal... são três meses. três meses num país que não existe. num país que é uma amostra dele mesmo. que ainda vive para fora. país de ilusão. mais uma vez não votei. desta vez tenho uma desculpa. os processos. amanhã de manhã vou enfiar-me num estúdio a fazer umas dobragens. vou arrumar as coisas à pressa para me ir embora esta semana. já sei que vou ter pouco tempo e que vou roubar horas à noite. como sempre. a noite é irmã do dia. depois aguento mais dois dias. depois segue-se o imago. depois sábado é um dia importante para um amigo. e se é importante para um amigo é importante também para mim. depois segue-se o imago ainda. e depois segue-se o Porto. essa cidade abstracta. hehehe cidade abstracta. gosto disso. são demasiadas vezes a mesma história para se contar. aquelas ruas que se conheceram em momentos dispersos da vida. uns bons. outros nem por isso. voltar. voltar. teatro. teatro. Shakespeare. voltar assim. Shakespeare. estou inquieto. ainda estou inquieto. com a certeza de que quando estiver no palco todas essa inquietações serão completamente secundárias. isto vai ter de ser bom. este é o meu trabalho.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

sobre o regresso ao palco. uma felicidade louca. explicar mentalmente as razões do afastamento. fase de reflexão. fase de reflexão que se torna de repente em fase de acção. lembrar coisas passadas. quando de repente se tinha vergonha do que se fazia e o que se fazia era o que se era. nenhum actor pode fugir de si. de repente está-se ali. de repente está-se ali e deixa de ser justo. quando o teatro deixa de ser justo. provavelmente é nesse ponto que o actor deixa de ser actor. depois há a necessidade de gritar. e o grito afasta e fecha as portas que tem de fechar. e o mundo gira normalmente. mas o mundo que gira na sua normalidade é feito de contrastes. e não espera. e não é um mundo dado à compreensão. depois as pessoas que são a tua vida sentem o caos demasiado perto. o caos é o abismo. e o medo da queda é insuportável. mas tu vives nele. é esse medo constante de queda que move os passos e a direcção. hoje tremeram-te as mãos. merda. é só um regresso. é só um regresso. nada mais normal. regresso a um país que na verdade já não é o teu. deixa de falar para ti. já não é o meu. as coisas que se entranharam ainda por cá andam. a vida não se apaga com borrachas de brincar. os cães que ladram na distância têm um perigo relativo. são pouco relativamente perigosos. encontros e desencontros. tenho como objectivo a sua invisibilidade. deus morreu. foi assim. está contada a história. já o mundo está demasiado cheio de histórias trágicas. adiante no assunto. já faz tão pouco sentido que é como se se tivesse apagado uma mancha da vida. o universo faz-se de surpresas. nem todas são boas. é normal. num dia amas e noutro dia chove. num dia vomitas e noutro faz-se luz. a maldita luz. a luz. a luz das manhãs frias. luz branca. corpo vazio. viver de memórias de coisas. que o tempo passe como tiver de passar.

há dias assim

domingo, 20 de setembro de 2009

sem paciência para escrever

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

apontamento

no fundo, e apesar das coisas invisíveis que lhe rodeavam a cabeça por vezes luminosamente branca, ela talvez tivesse o animal da desgraça a correr-lhe por dentro. dava com a cabeça nas paredes muitos dias. necessitava renovação na sua carne. no fundo ela estava condenada a desaparecer no vácuo da sua vida sem sentido. inócua na sua ilusão. deslocada da realidade. deslocada do lado real do mundo. era assim... uma natureza morta que definhava. ombros que se iam enclausurando cada vez mais. um círculo sobre si mesmo. buraco negro. cancro na pele exposta. fuga constante do sol.

sábado, 12 de setembro de 2009

já está quase.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

pois muitas mudanças nestes últimos tempos... parece que vou sair uns tempos de Barcelona... dirijo-me ao Porto para voltar a fazer alguma coisa de palco. provavelmente com mais pica do que nunca... enfim... com a minha escolinha... é importante, é importante. deixo aqui uma parte da cabeça com estes meus mânfios... mas isto é uma coisa que eu tenho de fazer. mas os meus mânfios são os meus mânfios e nada pode mudar isso. bem, o Imago está quase aí!!! especial atenção a NOTWIST e já para nem falar no DJ Yoda... palpita-se mais um fim de semana épico, quem sabe se não é o mais épico já vivido no Fundão, nessa cidade de trevas que recebe este dardo de luz chamado Imago... este ano promete, meus caros... este ano promete... é o décimo aniversário... o aniversário X... e com isto não digo mais nada... xôr Pedro e companhia sabem o que fazem... atenção... juro que escreverei alguma coisa com mais tempo. mas a verdade é que me apetece gozar este meu mês. abraços aos que contam. que contam cada vez mais.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

então vá

terça-feira, 1 de setembro de 2009

depois da queda o olhar curvo sobre os dias que não te visitam. curvo? sim, curvo. um olhar redondo sobre as coisas, redondo de circular. não tens tempo. andas por aí nas ruas de gente sem rosto. ninguém te vê. ninguém te olha. as vozes parece que se esconderam em lugares fundos. dá o salto. dá a merda do salto. o último salto. dá-o. é agora o tempo. é o tempo sem precedentes no meio da tua miséria que já foi um dia. chega de lamentos. chega de histórias por contar. chega de histórias mal contadas. querias o quê? remédios bem temperados e infantis cobertos de mistérios e magias e sonhos. és palerma. as múmias estão mortas. não te esqueças disso. naturezas mortas. cuspir no chão. vomitar no ar. nas paredes. é uma cidade velha. viagens. visitas. corpo. silêncio. silêncio. silêncio. escreves assim. escreves sempre assim. tiroteio interno. maldito sangue este que te forma. amaldiçoar a morte alheia. desconhecidos depois de tanta coisa. crise. bahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh treta. caminho recto. segue o teu rasto. no meio do esterco e da guerra. segue o teu rasto. segue o teu resto. segue o teu rosto. o teu rosto de brilho podre das manhãs secretas. uau. que loucura. que treta de loucura mais infantilmente pacóvia e moribunda. manda cagar. manda cagar o menino. manda cagar a menina. manda cagar. manda cagar. vai dançar hoje. vai dançar. rir do mundo que já lá foi. que morreu no seu próprio isco. na sua própria fraude. no seu reflexo encontrarão o seu caminho de cinza. última vez. testamento. praga. hahahaha bahhhhh

banda sonora dos dias. a questão do tempo. a maldita questão do tempo.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

não sei quantos anos disto

perdido entre música e este estado. cerveja e frango no forno e a melhor companhia de todas. preciso de tempo. esta foi a conclusão das férias de verão. é preciso tempo para poder fazer as coisas. está muito bem que haja uma desorganização da minha agenda e da minha vida pessoal, uma espécie de desorganização sem precedentes... mas as coisas são mesmo assim... é a crise do dentro a revelar-se no fora. mas isso não importa. o que importa é que é preciso tempo. a vontade anda por aqui à espreita. de vez em quando morde. porque raio será que só consigo escrever alguma coisa quando estou completamente fodido? a culpa será de não ter processo e de não querer corromper uma necessidade interna... mas que sei lá eu disso. é como é. há coisas que se passam assim e que ninguém pode controlar. coisas que se tornam erupções. ai cabeça, cabeça... para quê tanta cegueira dentro de ti??? depois a verdadeira revelação é a do tempo morto. saber que se perdeu tempo com múmias. isso é insuportável. é insuportável mas faz bem. não se cairá na mesma treta nunca mais. aprende fiuza aprende. repete. não se cairá na mesma treta nunca mais. as múmias devem estar enterradas. que o sol brilhe. que o sol brilhe como nunca num caminho qualquer. mesmo que não o sigas. mesmo que nunca o encontres. é bom saber que o sol brilha num caminho qualquer. é bom. ao menos isso. o sol há-de nascer para todos. assim dizem os livros.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

responder com o seguinte: Werther
tudo o mais que se foda

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

na cova da cultura

depois de ter sabido que o senhor Gil Nave ia encenar a Antígona e de me ter engasgado com esse facto e de me ter rido com o seu texto, mirabolante barroco do estilo arqueado e sem assunto (aqui), sou ontem confrontado com uma novidade do mesmo nível de pedantismo maniento dos que eu considero insuportáveis!!! meus caros, a Estação vai fazer uma escolinha!!! já estou a imaginar senhor Zé Teleguine a ensinar os chicos da província com a sua técnica mordaz, com o seu eterno padreco alcoólico vicentino navístico, agora com uns novos ares da máscara directamente importada da capital. lá está, estou eu bastante longe e afastado destes assuntos mas é que ele há coisas que não podem passar ao lado, ou melhor, há coisas que devem passar ao lado mas que se tornam demasiado descaradas para que passem. este ano há eleições. uau. batam palmas. há eleições. há sempre vários cenários possíveis. o mais provável é o caro Manel Freixo ganhar mais uma vez a treta, é assim, é o mais provável, o município de Silvares vai encarregar-se de lhe oferecer a coroa, a ele e à sua equipa de mafiosos da pior espécie, Miguéis Rainhas ao barulho e tudo. a Estação, com o seu rato do poder Zé Teleguine lá terá a sua escolinha, lá será mais uma vez a companhia do regime, lá se farão as obras do Cine-Gardunha, lá se aumentará o endividamento, enfim... a cantiga que já sabemos... estes meus dias no Fundão foram bastante agradáveis, para já porque o preço da média Sagres anda pelos 70/80 cêntimos e depois porque vi um museu novo bastante agradável, chama-se Museu da Imprensa!!! uau, vou dizer outra vez: Museu da Imprensa!!! uau!!! e então o que é o Museu da Imprensa? o Museu da Imprensa é uma sala com umas máquinas e com uns papéis que se descolam repetidamente da parede. meus caros, até eu os colei durante a minha visita!!! dá-me pena, hei-de fazer o quê? hei-de fazer o quê quando os Miguéis ainda por lá andam sem vergonha na cara, quando uns fazem a Antígona sem saber o porquê, quando outros fazem uma escolinha de teatro sem saber ler nem escrever... desculpem mas dá-me pena. como será possível que uma carrada de badamecos armados em personagens da intelectualidade reinante se possam dar ao luxo de cometer a pior fraude de todas, a fraude que se comete com as pessoas. porque o senhor Gil Nave não pode saber o que é a Antígona quando se monta no seu carro e se fecha na sua bolha insuportável de ignorância física, porque o senhor Gil Nave não sabe o que é cometer um crime por um princípio, da mesma maneira que o senhor Zé Teleguine não pode ensinar aos meninos e às meninas como se sobe uma cadeira com a técnica da máscara, e quem conhece a imagem do senhor Zé Teleguine sabe do que eu estou a falar, e quem diz o Zé Teleguine diz o cara dura Pedro Fino, técnico parido no GICC. a pergunta mais óbvia é: o que será que duas companhias de teatro medianas terão de tão especial para que se atormentem eternamente? não seria bonito até, por exemplo, ver o senhor Gil Nave dar umas aulinhas na escolinha da Estação??? por exemplo? o eterno encenador sem processo? encenador do mofo da velha escola? ou será que o Teleguine Rato se vai ficar pela secretária? e o Festival Y??? esse festival que faz o trabalho de casa do programador fundanense mais cobarde de todos os tempos que se recusa a assumir publicamente que falhou!!! porque falhou. dizem: sim mas temos uma programação. uau. temos uma programação!!! foguetório e alvíssaras!!! temos uma programação e temos um conjunto de criativos jovens fundanenses que se puseram na alheta. que se puseram na alheta porquê? porque temos uma programação!!! uau. uma programação numa cidade que se vai construindo como um mito do que foi um dia, algures nos anos 80...uma cidade que não produz nada que valha a pena do ponto de vista artístico, ahhh, mas que agora vai ter uma escolinha de teatro, que funcionará sob a alçada da Estação... que altamente... na Covilhã vão-se fazendo Antígonas... ao menos é a do Brecht... claro, o 25 de Abril não pode morrer, como se algum dia tivesse vivido, esse 25 de Abril de ratos, de asco, de treta. o que eu queria é que o programador do Fundão saísse do armário. o que eu queria era que a Estação e o senhor Gil Nave fizessem um espectáculo juntos!!! ahhh, dirão uns, isso é impossível!!! pois é, mas é triste, é que assim em vez de serem duas farsas seria apenas uma.

e já agora, leiam o texto do senhor Gil e tenham especial atenção ao ridículo a que se pode chegar quando não se tem nada para dizer.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

banda sonora dos dias. regresso.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

para picar o ponto

caros amigos e amigas...
tem sido impossível encetar qualquer tipo de conversação...
foram as festas de Gracia... semana de loucura e de trabalho intenso...
promete-se voltar em breve ao ritmo mais ou menos habitual, ainda que muita coisa tenha mudado na cabeça deste vosso eterno ciclista.
beijinhos e abraços.
é urgente voltar ao que importa.
é urgente não esquecer.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

a vitória mais surreal que vi até hoje

o futebol ainda surpreende. depois de um jogo completamente miserável, deprimente mesmo!!! os sacanas lá marcam um golo milagroso com a ajuda do Patrício!!! como é que é possível? bem, levantei-me e acreditei em deus mais uma vez, claro que depois deixei logo de acreditar porque não consigo fugir de mim durante muito tempo... o Sporting afinal de contas também é levado ao colo, não se sabe é ainda por quem... que miséria de jogo, um reflexo da pré-época, da falta de contratações, da crise de confiança que ali anda, naquela falta de alegria. porque o que ali falta é alegria. quem viu este jogo de certeza que compreende o que estou a dizer. nem um passe acertado, nem uma finta mínima, o Djaló... por favor... o Postiga... por favor... o Abel, por favor... tudo ali pode ter um por favor em frente... só o Puto Capitão é que ainda mexe alguma coisa, o Liedson estava fatal... bem, ainda nem estou em mim com o que vi agora. parecia com o AZ Alkmar, embora nesse ano os dados e o jogo fossem outros. necessidade urgente da equipa: reflexão!!! já nem é trabalho, é reflexão!!! tudo ali tem de pensar, do presidente ao treinador, os jogadores, mesmo os adeptos, tudo tem de pensar. nesta pré-época consegui ver os piores jogos de sempre. enfim... nem sei se esteja contente com esta vitória... mas pronto, lá ganhámos... deus é grande. mas que deus??? desculpem, eu às vezes esqueço-me...
é a tua antiga casa. na tua antiga rua. o cenário da tua infância. dormes. ruídos de fundo. batem na porta. assustadoramente. um homem diz-te que há um outro homem que já não o é. transformou-se. corre como um lunático a quatro patas. tornou-se num cão. mete medo às velhas e come crianças quando tem fome. dizes ao homem que te bateu na porta para entrar. que aí está seguro. vês o outro ao fundo da rua. ele ladra e vem na direcção da tua porta. fechas a porta a correr. ele embate na madeira com o seu corpo de homem cão. deve ser gigante. passam-se dias e dias e a rua está em silêncio. ouvem-se apenas os passos de corrida do cão gigante que já deixou de ser homem. tens de sair de casa. detestas estar preso e a fome já se instalou. aproveitas uma breve distracção do cão e corres para o quintal da frente. fechas o portão com toda a força. ele bem salta mas não consegue entrar. sempre que te aproximas da grade ele rosna. ameaça-te. provavelmente estás perdido. a sua energia está num outro grau da sobrevivência. parece imortal. não podes dormir. estás sozinho no quintal em frente à casa da tua infância e tens um cão que te ameaça. de repente ouves um barulho de outra casa. outra porta. um velho vem armado com um pau. o cão ataca-o. o velho bem se tenta defender mas o cão vai-lhe direito à garganta. uma dentada certeira e o velho cai. o cão olha-te enquanto tu o olhas a ele e ao velho que estremece de sufoco. tens de sair. tens de sair. começas a suar de nervos. o cão mete-te nojo. cresce-te uma espécie de raiva. tens ganas de matar o cão. tens ganas de liberdade. abres o portão do quintal em frente da tua antiga casa. atravessas as grades e caminhas na sua direcção. apanhas uma pedra na rua. segues na sua direcção. ele espera-te. parece um duelo. tu ficas quieto. ele fica quieto. gigante e quieto. olham-se profundamente. conhecem-se no limite da sobrevivência. tu avanças a passos largos e o teu coração dispara. ele corre na tua direcção. agarram-se. ele tenta morder-te. deita-te ao chão. tu seguras no seu pescoço para evitar os seus dentes. inventas força dentro de ti. como se o amanhã não existisse. puxas o braço atrás. dás-lhe com a pedra na cabeça. bem perto do olho. ouves um osso estalar. ele sangra para cima de ti. para o teu rosto. tu bates mais uma vez. e mais outra. e mais outra. e mais outra. e mais outra. e mais outra. perdes-te na necessidade de violência. ele cai em cima de ti. sentes o seu mijo quente em cima da tua roupa. o sangue da sua cabeça corre sem parar em cima do teu rosto. tiras aquele peso grotesco de cima de ti. olhas em volta. sentas-te no chão. olhas para o seu corpo e para a arma. talvez chores. talvez não chores. afinal de contas és tu que estás vivo. e só quem está vivo é que pode chorar. a guerra hás-de ser tu a ganhá-la. já não precisas que te esfreguem a vitória nos olhos. além disso o mundo está cheio de cães. de pessoas que tentam sair de casa. de pessoas que lutam com a fome. e quem não perceber isso. é uma múmia perdida no caos.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

um país
sonolência
drogas no aeroporto
silêncio na chegada
deriva
procurar rumos
cantos
gente
palavras
de repente estar no meio do nada
sem rede
sem uma corda
sem uma música
sem ouvir a tua voz
ou sem que a tua voz seja suficiente
apetece dizer a mesma coisa de sempre
MERDA
só tu percebes o que eu quero dizer

ainda de férias...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

banda sonora dos dias

de directa e com olhos meio fechados para um país que já não se reconhece. Lisboa. uma Lisboa em que a luz de outros tempos é agora outra. a outra que é ainda a mesma. fumar cigarros no aeroporto. entrar no taxi e desabafar: quero beber uma Sagres, comer um pastel de bacalhau, comprar A Bola, fumar um Português amarelo!!! ai ai ai, o taxista dá-te a triste notícia que o teu tabaco de sempre já não existe, fónix, nem me digam isso... depois de procurar em alguns lugares... existe sim senhora!!! nem tudo está perdido. depois dão-se abraços que, por muito que se diga que não, ainda são os mesmos de antes, é incompreensível. anda-se à deriva numa cidade. a língua que se ouve na envolvência dos lugares é a tua mas soa-te demasiado estranha. depois vais para a tua terra que já não é tua. nada te prende aí. o amor longe. a mãe fora. ai ai ai. lá estão os amigos, cada vez menos, as minis, os jogos de futebol... enfim... enfim... enfim... o tempo que passa demasiado lento, a insolência interna do vazio. ainda não me digeri.

domingo, 12 de julho de 2009

hoje à noite.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

acordar cedo com o som da chuva dá nisto

como chegar à expressão das coisas no ponto máximo da realidade sensível? por exemplo, agarro numa palavra. morte. junto-a a mim. eu morte. eu a morte. posso seguir infinitamente o carácter do exercício. vou acrescentando riscos. palavras. descobrindo sentidos para o que escrevo. o que é importante é que se insiram na respiração da frase. eu a morte. é já uma frase com potencial. falta-lhe um verbo. eu a morte quero-a. altero. eu à morte quero-a. altero outra vez. a morte quer-me a mim. já me torno secundário nas linhas do mundo. e se inserida numa estrutura rítmica com o balanço suficientemente assumido. a frase pode dizer-se explosiva. a morte quer-me a mim. acrescentaria. puta. a morte quer-me a mim. a puta. a morte puta quer-me a mim. por aí em diante. isto são normalmente processos inconscientes de exploração do ritmo e do sentido. cada texto é único. não há correcções. não há voltar atrás. são palavras que surgem como um líquido pouco líquido. palavras mercúrio. o objectivo de um texto é chegar a um ponto em que o ritmo que tem dentro de si seja o ritmo da cabeça, não o ritmo da cabeça pensamento, antes o ritmo da cabeça verbal. a escrita como uma dança da língua. é um movimento do corpo sonoro que se conecta com uma fase profunda e por vezes obscura do pensamento. escrita realidade. já não há ficção possível nesta fase das coisas. talvez não tenha havido nunca. é escrever textos de ar. textos de respiração. textos feridas. textos de guerra. pode ser realmente que tenha a vida fodida e a cabeça em desvario. que as palavras me saiam como sangue. preciso que este sangue saia de mim até não haver mais gotas desse sangue. sangue história. sangue memória de terra. que estas malditas palavras saiam de mim até voltar à luz. a situação é de guerra. hei-de fazer o quê? só posso esperar que passe. não devia escrever coisas destas. deveria sair e passear e conhecer pessoas. uau. posso fazer tudo isso e continuar assim. com textos negros a serem escritos na cabeça. a serem perdidos para sempre. textos sem vida escrita. acontece-me uma coisa. ando pela rua. nesse caminho pela rua começo o texto. por dentro. vem o deslumbramento doentio da construção da frase. chego a casa e tento a passagem. não posso. não consigo. perco a mancha gráfica. porque um texto tem um grafismo inerente. e escreve-se com palavras e não com a cabeça. a cabeça está lá mas não é importante. a cabeça pode construir os textos que lhe der na gana. mas nunca serão escrita. serão possíveis poemas, possíveis ideias, possíveis imagens. a escrita é outra coisa. não que este pensamento não seja um bom exercício para a escrita, conjugações de palavras, de ritmos, de sentidos. mas a cabeça ela mesma não permite a leitura. não se pode publicar a cabeça. pode cortar-se a cabeça e mostrá-la por aí, pelos museus do mundo, pode cortar-se em fatias, pode mostrar-se o interior do cérebro, mas o que é isso? a cabeça está para a escrita como está para o teatro, só atrapalha, um actor não pode trabalhar com ideias porquê? porque ao trabalhar com ideias trabalha para as ideias e as ideias são irreais, não se vêem, o público não vê as ideias do actor, da mesma maneira que não pode ler a cabeça do escritor. isto são coisas físicas. registos. podem achar que lêem a cabeça do escritor enquanto lêem o texto, e aí ficam contentes porque pensam que o percebem. e é esse o engano. pensam que percebem a angústia ou a solidão ou a alegria ou o que seja. a questão é que há outros graus de entendimento que são partilhados com a escrita. outros tipos de comunhão. porque tudo se trata de comunhão. até o ódio é uma forma de partilha. nunca escrevi textos para serem lidos em voz alta. talvez por isso me tenha lido em público muito poucas vezes. agrada-me esta dimensão íntima. textos ao ouvido. claro que podem dizer que isto sou eu cheio de manias de escritor ou mandar outras patacoadas, como se eu neste momento conseguisse ter alguma mania. está de chuva hoje. talvez a chuva lá fora e o acordar muito cedo me façam escrever estas coisas. já não posso passar sem as palavras. dava tudo para ter tempo. dava tudo para ter tempo. hei-de revolver-me nesta merda. é uma promessa de um cão. hei-de resolver-me nesta merda nem que para isso me esventre todo, nem que para isso tenha de espalhar as minhas tripas cancerígenas em folhas brancas. lá estou eu... como se isto adiantasse alguma coisa. isto de estar triste é um pincel daqueles... vou fazer café.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

o silêncio. ao nome.

a minha voz última sinto-a entrecortada. é uma voz sem força. já não respiro como dantes. já não saio de mim como dantes. tenho frases mais pequenas e com mais pausas. sou uma página com menos distância. falo para dentro. se visses a minha figura agora de certeza que irias achar decadente. de certeza que te iria meter nojo. devo parecer um velho. tenho evitado olhar-me. ando a disfarçar-me de alguma coisa para evitar que me reconheça. é ter saudades dos teus ombros. sim sou impossível. tão impossível como qualquer outra coisa. talvez me tenha afundado na minha merda. já viste? as putas das portas fechadas. sou um doido varrido, é o que é. na verdade não passo disso. sou um doido varrido que pensa que o seu mundo é o real. tinha sorte, tu chamavas-me às coisas. mas agora... sem conexão, limitado nesta caixa cerebral, com necessidades de um qualquer chamamento... e é um silêncio que vem de lado e por cima que me provoca tremuras infindáveis na cabeça, nos braços. nesta treta de voz entrecortada. nesta lamentação constante. nesta necessidade louca de evasão. de explosão. de ruído. de massas de ar quente que te envolvem e te saturam o ar que respiras. sítios húmidos. covis de insectos. só aí me sinto vivo. é insuportável. eu nunca fui assim. foda-se. eu nunca fui assim. pode dizer-se que tinha riscos de ficar assim. mas eu não queria. como poderia eu querer? como? só se fosse completamente estúpido que conseguisse ignorar a tua luz. e ela nunca foi ignorada. e disto ninguém me diz o contrário. e já sei que para a frente é o caminho. e que não se pode esperar pela vida. já sei de muita coisa. não me serve para nada.

banda sonora dos dias. 4º1º

carta à mãe

o meu dia já vai longo na cabeça. talvez menos longo do que eu desejaria no corpo. estou entorpecido. tornei-me num bruto. naquilo que não queria nunca tornar-me. tenho pensado muitas vezes nas nossas lutas com o mundo. na maldita sobrevivência. tenho pensado muitas vezes nos sonhos de criança e depois no que esses sonhos se tornaram. uma espécie de amontoado de pó. estou um caco. provavelmente vais reparar nisso quando me voltares a ver. estou um caco pouco recomendável. pareço um soldado de uma guerra de dentro. sabes que sempre fui um problema. mas é assim. sou um problema com pequenos rasgos de luz marcados na vida. só agora é que já não acredito mais que essa luz volte a visitar-me. nem a deixar marcas. nem a deixar rastos. ultimamente é só feridas. também sei que faço por elas. também sei que a maior parte das vezes sou eu quem as chama. é aquela conversa que a avó tem sempre sobre o facto de eu me destruir aos poucos e constantemente. sabes o que acho que se passa agora? perdi tudo o que tinha para perder. sabes que eu preciso de sonhos. sempre precisei. vivia no meio deles. tantas vezes contra aquilo que tu dizias. mas era assim... as coisas lá se iam resolvendo, muitas vezes apenas por puro milagre, ou sorte, ou coisa que o valha, por imposição do destino. talvez eu tivesse a mania que era especial. talvez eu tivesse a mania que podia lutar contra o inevitável. talvez tanta coisa que nem sei muito bem como fazer análises deste estado. é um estado assim de vazio. sabes quando a prioridade máxima era fugir da violência das coisas? por vezes lembro-me disso. a violência perseguia os nossos passos. ia atrás de nós para todos os lugares. a violência. o desprezo. o descaramento. a fome. o não ter nada e ser feliz com isso. numa ilusão qualquer de que tudo se iria resolver. fosse lá como fosse. e as coisas iam e vinham. umas vezes mais e outras menos. era assim. por ciclos. o monstro desapareceu e nunca foi necessário. foi a alegria absoluta. o monstro que agora precisa de amigos e de filhos. deve sentir-se demasiado solitário. mas não sentimos todos? a solidão é o que nos ocupa. já não percebo as ligações com esse lado. prefiro admiti-lo como um mero fantasma. uma referência ausente. mas o tema não é este. estou a preparar-me para ir aí. e tenho medo. voltei a ter medo. sabes que sou um impulsivo irreflectido. sou assim. não gosto de premeditações e custa-me planificar a vida. sou aberto ao acaso. deixo-me levar facilmente por energias de coisas. sejam elas boas ou sejam elas más. agora tenho de ir aí. já não há nada a fazer. nem sei onde vou ficar. é como se me sentisse um intruso em todos os lugares que já não são meus. claro que é uma sensação parva. os lugares são pessoas. eu é que talvez me sinta demasiado um não lugar. como se tivesse perdido a terra e me tivesse tornado num ser demasiado aéreo. as desilusões são tramadas para a cabeça. também tenho andado a pensar em processos de morte que não sejam muito descarados. algo do estilo morte lenta. de certa forma já é aí que me encontro. esta cena lixou-me a cabeça toda. estou numa inquietação constante. mas é assim, cavei o buraco, o buraco vai-se aprofundando e não sei se tenho unhas para espetar na terra nem força nos braços para voltar a subir. poderia fazer um apelo à tua calma e à minha. o problema da calma é que o mundo não a tem. o mundo não dá tempo. o mundo segue o seu curso cada vez mais rápido, mais fugaz, mais cheio de atrocidade. já viste que nunca pudemos parar para pensar nas coisas a sério? tiveram de se assumir coisas e arranjar soluções sempre improvisadas? de repente andas por aí e tens dois filhos e desenrasca-te. do outro lado nunca veio nada. do outro lado vinham as festas e os amigos e as pessoas que não acreditavam que fosse realmente assim. mas era mesmo. era tão assim. era demasiado assim para que realmente fosse fácil acreditar. e a imagem do regresso à casa cor-de-rosa? aquele vazio? tudo o que restava desmontado? jantar sentados em caixas de cartão a rir às gargalhadas da situação em que estávamos. era possível rir disso. era possível bater no fundo e ver isso como um lado positivo. como uma etapa. tenho andado a pensar nesses momentos de uma maneira estranha. acho que na realidade nunca os absorvi. ficaram-me aqui como uma construção gigante de uma revolta qualquer. contra tudo e contra todos. conseguia rir-me mais na altura do que hoje. era a magia da inocência. pensava que éramos únicos. que não havia mais mundo além disso. hoje é diferente. sei de coisas. que coisas são essas não importa. sinto-me gasto. é importante que saibas disto. sinto-me mais gasto do que alguma vez senti. não estou a dizer que vá cometer suicídios ou outras soluções descabidas. nunca mais acordo em hospitais. essa promessa está feita. a memória da noite mais absurda desta vida. olha, é assim, transporto a cruz comigo. as razões são sempre as mesmas para estas minhas crises. amor, dinheiro, trabalho, vazio, sem rumo, loucura, impulso. os pais devem sempre orgulhar-se dos filhos. e olha, tornei-me numa coisa que não pode proporcionar orgulho. nem sei o que ando a fazer. é um ponto de saturação. um ponto de tensão constante. estou cansado. estou mesmo cansado. preciso de dormir. preciso de paz. estou quase a chegar.

terça-feira, 7 de julho de 2009

já sei que nestas alturas críticas... o diabo bate à porta... pois hoje o diabo voltou a visitar-me. e digo-vos uma coisa, o diabo fala italiano. ouvi eu com estes ouvidos que a terra há-de comer.

deixa-me dormir esta noite. deixa-me viver este dia.


segunda-feira, 6 de julho de 2009


chamava-se alguma coisa que já nem havia memória. tinha perdido o nome. tinha perdido o rumo. era membro do colapso. tinha-se apagado de vez aí pelas ruas. sorrateiramente. ninguém sabia muito bem o porquê desse estado. talvez porque fosse invisível. talvez porque lutava contra a presença de si nas coisas. sabia que gostava de ter sido uma gota de água no meio de um oceano, sabia que isso seria o seu único remédio. já lhe tinham dito muitas vezes que uma pessoa não é mais do que isso, uma mísera gota de água, que ou se funde num mar de gente ou se evapora num ar de nada e de loucura. ele sabia disso. sabia disso com o corpo. sentia-o constantemente a assaltar-lhe o pensamento. o seu nome estava esquecido tal como ele estava esquecido. não recordava a sua voz. não recordava o olhar. estava apagado. infiltrado num sistema obscuro. pós-colapso. sabia que um dia tinha tido uma casa. e tinha tido uma causa. e tinha tido gente. sabia disso porque a memória lhe pregava rasteiras. tinha fantasmas que o invadiam nas noites e nos dias. em forma de sonho ou de visão. era atormentado pelo vazio que o obrigava a agir. nunca sabia o que havia de fazer. os membros entorpeciam-se. o chão que pisava tornava-se de repente circular como que a impulsionar a queda. era uma visão constante do amanhã que não virá. sabia de cor a sua morte. contava os dias apressadamente. tinha desenvolvido um ódio especial pelo tempo. o tempo que lhe fazia crescer as unhas. que lhe agudizava a explosão interna. que lhe expunha cada vez mais o vazio de si. já não se podia chamar pessoa. era um muro. um muro de caos e de ruído. um muro antigo. de musgo. húmido. muro prestes a cair à primeira gota de chuva do inverno seguinte. se para isso sobrevivesse ao verão ou ao outono. havia na terra muitas explicações para outros como ele. como seria possível descer a um tal ponto de nada interior? por vezes surgiam-lhe rasgos de alucinação. era criança outra vez. talvez tudo tivesse realmente começado nesse ponto. no ponto em que as crianças se apercebem de que são crianças e a meninice desaparece para sempre. talvez tivesse sido demasiado cedo. os barulhos envolventes. as descargas constantes de violência contra as paredes e contra as portas e contra os armários e contra si. porque a violência tinha sido também contra si. porque talvez não exista nada pior do que uma criança privada de sonhos. não se sabe ao certo. já tinha deixado de se sentir útil. isso já não era sequer um problema pelo qual fosse necessário meditar. era uma sombra de alguma coisa que já não era nada. nem memória havia de como era. poucos registos físicos. fotografias rasgadas. papéis espalhados em quartos e gavetas de gente. uma vida que era como um castelo de areia. muito tempo a construir para chegar ao ponto em que chega a onda com a sua leveza de água e o aniquila para sempre. era assim. no fundo sabia disso. no fundo sabia que a onda já tinha vindo e vinha e vinha e vinha cada vez mais perto até que lhe passava por cima e avançava e o cobria totalmente. sensação de afogamento. água que entra forte no corpo. respirar água. beber água. comer água. explosão dos pulmões. explosão dos olhos. explosão física. desgaste. morte. corpo que se balança na água mas que é já um balanço do nada. ao sabor da corrente. talvez a única sensação de liberdade verdadeira seja essa. quando a água controla os movimentos. é uma espécie de voltar à mãe. voltar à origem. a casa. estava descontrolado na essência. que rumo procuraria que o fizesse acordar? não tinha já nada que o prendesse. ninguém o procurava. afastado sem motivo. morto em vida. deambulava por palavras silenciosas como se um novo vocabulário existisse dentro de si. um vocabulário interno. com sons de orgãos. com sons ínfimos de músculos e de correntes sanguíneas. sons microscópicos. talvez o que precisasse noutros tempos fosse de uma mão gigante. uma mão que o pusesse noutro caminho. noutro lado qualquer do mundo. os fantasmas comiam-lhe cada vez mais o dentro. sentia-se apodrecido. era uma demência que começava a instalar-se e que não tinha solução. não possuia visões de amanhã. o seu corpo começava a definhar com uma velocidade ascendente. uma explosão que se projectava. corpo com marcas de algum tipo distinto de guerra. rosto marcado. magreza. queimado por dentro como os animais que se possuem. o nojo da posse. talvez tivesse participado numa guerra sem tréguas contra si mesmo. o maior inimigo de si. uma guerra que só poderia acabar com a morte de um dos lados que eram o mesmo. como todas as guerras. nenhuma guerra tem lados. o oceano é o mesmo. seria uma guerra suicida contra os demónios. mas que demónios? não seriam apenas sucessões constantes de mal entendidos? como todos os demónios? como todos os fantasmas afinal o são. quando não se resolve a vida qual será o motivo mais real de todos? a não ser o mal entendido que cada vez vai crescendo mais e mais e mais. um mal entendido que é uma espécie de cancro que fica a carburar lentamente na cabeça até à explosão da carne. mas quem seria afinal esta amostra de homem que caminhava pelas ruas sem direcção em vista? sem rumo. sem orientação. desconectado da esperança dos dias de outrora. não se sabe. talvez a esperança de outros tempos fosse a mais absoluta de todas as irrealidades e talvez tivesse uma condenação pendente. uma condenação inevitável. que não valia a pena abrir caminhos. nem sulcar caminhos na pele. não valia a pena. seria sempre tarde para dar a volta. até podia criar ilusões. até poderia sentir amor. mas a maldita condenação que lhe contava os dias pairava sempre sobre a sua cabeça e sobre o olhar dos outros. algo estava realmente mal em toda a sua vida. havia um ponto em que tudo tinha de cair. nunca lhe tinha sido possível ser direccionado para a vontade. se assim se pode dizer. tinha tido várias tentativas de fuga para o real mas todas acabavam por ruir na primeira investida do medo. seria medo? o problema seria o medo? mas medo de quê? que medo pode ter quem não tem já nada a perder? medo de quê? seria a inexistência de paisagens vivas dentro da sua miséria o que realmente o atormentava? porque será que chegou a um ponto em que se começou a sentir uma mera fraude? um mero desenho rabiscado numa folha cheia de dores e amarguras e frustrações e desentendimentos? como poderia ter dado a volta? poderia ter pura e simplesmente saído do filme? seria capaz? seria possível? agora que era só um ponto obscuro no desenrolar do mundo. agora que contava os dias dentro de si. que esperava que a notícia da última respiração o visitasse. que olhava à sua volta e o seu olhar atravessava as coisas. o seu olhar baço. o seu corpo transparente. o que fazer? como sair desse ponto? não há volta a dar. mergulhado na insensatez da sua guerra contra o nada. mergulhado na sua luz extinta e sem nome. rosto coberto de lágrimas e fumo. sem sentido. sem sentidos. à espera da noite.

não posso escrever estas coisas

deste com a cabeça
perdeste a cabeça
algo te come a cabeça
a cabeça
a cabeça
no chão está a tua cabeça
deste com a cabeça na cabeça
corta-se a cabeça
rola a cabeça

cabeça bola
cabeça cortada
cabeça que rola pelo chão de pedra
cabeça atirada dos edifícios
cabeça mentira
cabeça esterco
cabeça merda
cabeça impossível
cabeça muro de angústia
cabeça canibal
cabeça esquecida
cabeça descontrolada
cabeça droga
cabeça violência
cabeça corpo
cabeça estilhaço
cabeça vidro
cabeça esquecida pelo amor da cabeça a mulher
cabeça explosiva
cabeça virada para dentro
cabeça silêncio
cabeça ferida
cabeça obscura
cabeça apática
cabeça sem vida
cabeça impossibilidade
cabeça inconcreta
cabeça vaga
cabeça rasgo de tempo
cabeça treta
cabeça sem olhos
cabeça falta
cabeça o caralho
cabeça a merda
cabeça foda-se
cabeça vontade de fugir
cabeça à deriva
cabeça fome
cabeça sem palavras
cabeça de silêncios
cabeça parede
cabeça mãos
cabeça mãos na cabeça
cabeça lágrimas
cabeça
cabeça
cabeça de fumo
cabeça de fumo
cabeça que arde
cabeça de cinza
cabeça bahhhhhhhhhh
o caralho de cabeça
que cortem a cabeça
que esqueçam a cabeça
que me fodam a cabeça
esta cabeça nada

banda sonora dos dias. mais uma vez. nada de novo.