segunda-feira, 6 de julho de 2009

chamava-se alguma coisa que já nem havia memória. tinha perdido o nome. tinha perdido o rumo. era membro do colapso. tinha-se apagado de vez aí pelas ruas. sorrateiramente. ninguém sabia muito bem o porquê desse estado. talvez porque fosse invisível. talvez porque lutava contra a presença de si nas coisas. sabia que gostava de ter sido uma gota de água no meio de um oceano, sabia que isso seria o seu único remédio. já lhe tinham dito muitas vezes que uma pessoa não é mais do que isso, uma mísera gota de água, que ou se funde num mar de gente ou se evapora num ar de nada e de loucura. ele sabia disso. sabia disso com o corpo. sentia-o constantemente a assaltar-lhe o pensamento. o seu nome estava esquecido tal como ele estava esquecido. não recordava a sua voz. não recordava o olhar. estava apagado. infiltrado num sistema obscuro. pós-colapso. sabia que um dia tinha tido uma casa. e tinha tido uma causa. e tinha tido gente. sabia disso porque a memória lhe pregava rasteiras. tinha fantasmas que o invadiam nas noites e nos dias. em forma de sonho ou de visão. era atormentado pelo vazio que o obrigava a agir. nunca sabia o que havia de fazer. os membros entorpeciam-se. o chão que pisava tornava-se de repente circular como que a impulsionar a queda. era uma visão constante do amanhã que não virá. sabia de cor a sua morte. contava os dias apressadamente. tinha desenvolvido um ódio especial pelo tempo. o tempo que lhe fazia crescer as unhas. que lhe agudizava a explosão interna. que lhe expunha cada vez mais o vazio de si. já não se podia chamar pessoa. era um muro. um muro de caos e de ruído. um muro antigo. de musgo. húmido. muro prestes a cair à primeira gota de chuva do inverno seguinte. se para isso sobrevivesse ao verão ou ao outono. havia na terra muitas explicações para outros como ele. como seria possível descer a um tal ponto de nada interior? por vezes surgiam-lhe rasgos de alucinação. era criança outra vez. talvez tudo tivesse realmente começado nesse ponto. no ponto em que as crianças se apercebem de que são crianças e a meninice desaparece para sempre. talvez tivesse sido demasiado cedo. os barulhos envolventes. as descargas constantes de violência contra as paredes e contra as portas e contra os armários e contra si. porque a violência tinha sido também contra si. porque talvez não exista nada pior do que uma criança privada de sonhos. não se sabe ao certo. já tinha deixado de se sentir útil. isso já não era sequer um problema pelo qual fosse necessário meditar. era uma sombra de alguma coisa que já não era nada. nem memória havia de como era. poucos registos físicos. fotografias rasgadas. papéis espalhados em quartos e gavetas de gente. uma vida que era como um castelo de areia. muito tempo a construir para chegar ao ponto em que chega a onda com a sua leveza de água e o aniquila para sempre. era assim. no fundo sabia disso. no fundo sabia que a onda já tinha vindo e vinha e vinha e vinha cada vez mais perto até que lhe passava por cima e avançava e o cobria totalmente. sensação de afogamento. água que entra forte no corpo. respirar água. beber água. comer água. explosão dos pulmões. explosão dos olhos. explosão física. desgaste. morte. corpo que se balança na água mas que é já um balanço do nada. ao sabor da corrente. talvez a única sensação de liberdade verdadeira seja essa. quando a água controla os movimentos. é uma espécie de voltar à mãe. voltar à origem. a casa. estava descontrolado na essência. que rumo procuraria que o fizesse acordar? não tinha já nada que o prendesse. ninguém o procurava. afastado sem motivo. morto em vida. deambulava por palavras silenciosas como se um novo vocabulário existisse dentro de si. um vocabulário interno. com sons de orgãos. com sons ínfimos de músculos e de correntes sanguíneas. sons microscópicos. talvez o que precisasse noutros tempos fosse de uma mão gigante. uma mão que o pusesse noutro caminho. noutro lado qualquer do mundo. os fantasmas comiam-lhe cada vez mais o dentro. sentia-se apodrecido. era uma demência que começava a instalar-se e que não tinha solução. não possuia visões de amanhã. o seu corpo começava a definhar com uma velocidade ascendente. uma explosão que se projectava. corpo com marcas de algum tipo distinto de guerra. rosto marcado. magreza. queimado por dentro como os animais que se possuem. o nojo da posse. talvez tivesse participado numa guerra sem tréguas contra si mesmo. o maior inimigo de si. uma guerra que só poderia acabar com a morte de um dos lados que eram o mesmo. como todas as guerras. nenhuma guerra tem lados. o oceano é o mesmo. seria uma guerra suicida contra os demónios. mas que demónios? não seriam apenas sucessões constantes de mal entendidos? como todos os demónios? como todos os fantasmas afinal o são. quando não se resolve a vida qual será o motivo mais real de todos? a não ser o mal entendido que cada vez vai crescendo mais e mais e mais. um mal entendido que é uma espécie de cancro que fica a carburar lentamente na cabeça até à explosão da carne. mas quem seria afinal esta amostra de homem que caminhava pelas ruas sem direcção em vista? sem rumo. sem orientação. desconectado da esperança dos dias de outrora. não se sabe. talvez a esperança de outros tempos fosse a mais absoluta de todas as irrealidades e talvez tivesse uma condenação pendente. uma condenação inevitável. que não valia a pena abrir caminhos. nem sulcar caminhos na pele. não valia a pena. seria sempre tarde para dar a volta. até podia criar ilusões. até poderia sentir amor. mas a maldita condenação que lhe contava os dias pairava sempre sobre a sua cabeça e sobre o olhar dos outros. algo estava realmente mal em toda a sua vida. havia um ponto em que tudo tinha de cair. nunca lhe tinha sido possível ser direccionado para a vontade. se assim se pode dizer. tinha tido várias tentativas de fuga para o real mas todas acabavam por ruir na primeira investida do medo. seria medo? o problema seria o medo? mas medo de quê? que medo pode ter quem não tem já nada a perder? medo de quê? seria a inexistência de paisagens vivas dentro da sua miséria o que realmente o atormentava? porque será que chegou a um ponto em que se começou a sentir uma mera fraude? um mero desenho rabiscado numa folha cheia de dores e amarguras e frustrações e desentendimentos? como poderia ter dado a volta? poderia ter pura e simplesmente saído do filme? seria capaz? seria possível? agora que era só um ponto obscuro no desenrolar do mundo. agora que contava os dias dentro de si. que esperava que a notícia da última respiração o visitasse. que olhava à sua volta e o seu olhar atravessava as coisas. o seu olhar baço. o seu corpo transparente. o que fazer? como sair desse ponto? não há volta a dar. mergulhado na insensatez da sua guerra contra o nada. mergulhado na sua luz extinta e sem nome. rosto coberto de lágrimas e fumo. sem sentido. sem sentidos. à espera da noite.

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