quarta-feira, 1 de julho de 2009

sonho

é de dia. vem uma certa luz de fora que entra através do frio do edifício. a luz exterior não altera nada. por dentro há lâmpadas fluorescentes que anulam o fora. é tudo igual. como se o tempo natural não passasse por aquele lugar. tu estás na cama como um buda em penitência. não te podes mover. ou seja, podes mas não deves... e olha bem com quem estão a falar... estás amarelo e inchado. vomitas constantemente. talvez seja o fim. já viveste tempo a mais e com demasiada treta nas mãos e na cabeça. sentes-te uma cobaia cheia de tubos e porcarias insignificantes. estás ligado ao mundo meu cabrão, estás ligado a máquinas que te permitem viver. é alguma coisa com o teu fígado que não está bem. bebes demasiado. bebias. aí ninguém te serve nada. cheiras mal. está um calor insuportável e estás a morrer. soltas a pele. a pele seca e vai caindo em cima dos teus lençóis. isso já não te importa. tentam dar-te comprimidos que recusas a todo o custo. porque queres morrer. tudo se torna pressionante. chamas nomes a todos bem alto. deves ter alguma coisa terminal. só um milagre te pode salvar. nesse momento pensas em toda a tua vida. até queres escrever. mas não te deixam. preferem que vejas televisão na hora recomendada da estupidez oficial. gritas que precisas de escrever. lá te trazem um bloquito pequeno com uma caneta azul básica. detestas tudo aquilo. não queres que ninguém te visite. e quando conseguem desatas aos gritos dentro do quarto. tens vergona, só fizeste porcaria atrás de porcaria durante toda a tua vida. só deixas entrar companheiros de luta. nem família nem nada. tens vergonha da tua mãe. o teu amor tenta visitar-te mas tu não deixas. não podes deixar que te veja assim. não consegues. estás amarelo como as mimosas mas só cheiras a carne apodrecida. não te deixam fumar e isso enerva-te. tens de ficar numa cama e isso enerva-te ainda mais. de noite foges mas apanham-te. gritas larguem-me. tragam-me um computador filhos da puta. deixem-me vomitar. estás farto de soro. tudo aquilo te dá asco. a escolha foi tua. é desumano aguentarem a tua respiração num corpo já disforme. queres um caderno mas a tua escrita é física. preferes um computador. gostavas de fazer o relato em tempo real da tua morte. o teu diário eternamente fixo na memória. estás um caco. só queres beber como se não houvesse amanhã. todos correm atrás de ti e tu só dizes para te deixarem em paz, para te deixarem morrer em paz. sedativos e lá te deixas dormir. os teus companheiros de luta lá te arranjam um computador. ficas contente. deixam-te um cigarro contra a vontade mas lá fumas um na casa de banho. estás doente mas ainda estás vivo. há uma volta que se dá no corpo que o termina. nem sabes bem onde estás. o teu amor lá te faz uma visita mas nem sabes o que dizer-lhe. como podes dizer-lhe alguma coisa se te cai a pele? pedes desculpa. mandas uns gritos depois do teu amor sair e te obrigar a prometer que vais ficar bem. mandas uns gritos. tens uma noite de convulsões tremendas. gritas os últimos nomes ao mundo. passado um dia alguém lê um poema em voz alta. funerário. voltas à terra que não te guardou.

2 comentários:

Johnny disse...

A parte inicial fez lembrar a parte inicial do cadernos, aquela do "sou um velho doente... sou (qualquer coisa - já não me lembro)"

Como costumo ler isto no google reader ainda não tinha reparada que tinha sido assinalado com conteúdo impróprio. Parabéns pela honra.

Pedro Fiuza disse...

não é honra nenhuma. fui eu que assinalei. mas assim evito. além disso só me anda a apetecer escrever barbaridades.