segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

comecemos no ponto fulcral. o acidente. o acidente mais marcante de todos os acidentes. não o fim. o mais marcante é sempre o início. quando começa a vida. quando se abrem os olhos e se vê um falso paraíso construído sobre uma mentira verbal. ganha-se um nome. uma denominação. todas as quedas precisam de ter uma referência. o tempo das quedas para o vazio já morreu com um mergulho na informação. o sistema a isso obriga. é a capitalização do sonho, digamos assim. houve um início sangrento do corpo em junção com os ferros. uma mistura baça de líquidos infectos e membros e cabeças que saiu a custo. talvez já um medo do que seria mais tarde a realidade viva. diz-se por aí que há magia nisto. é a magia da primeira luz. esquece-se que a primeira luz é quase uma provocação da cegueira. que há lágrimas e gritos à mistura. que tudo não passa de uma massa muscular disforme e suja e sem rosto. maldita necessidade de encontrar magia no esterco. passemos então a outra sala, também ela é execessivamente asséptica, nada pode conspurcar o facilmente conspurcável. aqui limpa-se o corpo. é uma sala desconfortável com uma luz demasiado fria. o branco da luz torna o vermelho do sangue demasiado irreal para que seja verdade, parece um efeito especial, um crime sintético, uma desolação plástica. aqui ganha-se o medo. o medo da falta. o medo da fome. a carne com o seu nome e o seu medo começa aqui a caminhada para a derrota essencial. e ainda não pode fugir-lhe. ainda lhe faltam outras salas com outras condições. há-de ainda vir o dia. tudo isto é de noite. claro. o imaginário leva a estas armadilhas textuais. é um edifício monstruoso que fica no alto de uma colina e no mais completo isolamento. é um edifício híbrido. hospital e fábrica. um mecanismo sistemático de despessoalização. objectivo: aniquilar a vontade derradeira. o desejo de morte. aqui todos os bichos são limpos no sentido de se obrigarem a si mesmos ao terror básico da vida. condicionam-se para não terem desejo nem sonhos nem vontade. a vontade é um passo para a instabilidade. voltemos à sala. da sala do medo passa-se sorrateiramente por uma porta demasiado pequena para um quarto ainda mais pequeno. nesse quarto há uma cama também ela demasiado pequena. a cama é o único objecto que se encontra aí. central. deita-se o objecto purificado nessa cama e ele aí fica. os homens e as mulheres de bata saem da divisão e observam pela parede. é daquelas paredes que só deixam ver de fora para dentro. a luz interior é mínima. há uns braços mecânicos que vão alimentando movendo limpando aquilo que será um dia alguma coisa, um ser vivo, é a sala da solidão e da necessidade de deus. entretanto o ser que pariu esse ser já foi desfragmentado e transformado em ração para outros animais. diz-se que é altamente nutritivo e que foi uma descoberta revolucionária em todos os pontos do globo. houve fogo de artifício e condecorações. a algazarra do costume na imprensa. chaves de portas imaginárias de cidades. dinheiro. elevados graus de mérito. pontos subidos na escada vertiginosa da dita civilização. um passo gigante em direcção ao futuro. o controlo e a utilidade prática do controlo. apenas a espécie ganha com o sacrifício dos seus. merda, disseram os dissidentes, foram os primeiros a servir a experiência. eram seres doentes. tinham uma patologia no espírito. a necessidade de dizer não. ora tal coisa não podia ser facilmente aceite no sistema mais bem pensado de todos os sistemas. era a segurança de toda a sociedade que estava em perigo. estarão muito melhor dentro de alguns estômagos, provavelmente dos que sonhavam com os mesmos passos da negação, tudo é útil. o lema dos lemas. havia um rosto que estava por cima de todos os rostos mas ninguém o tinha visto. falava-se nele. havia um procedimento que aparecia escrito e seguia-se naturalmente. ninguém pensava se era ou não era isto ou aquilo. seguia-se com uma prontidão hiper eficiente. o maldito medo de falhar. deitado na cama que era o centro do mundo estava aquilo que seria o protótipo do ser perfeito. o futuro provável do nada. o que seria um ser perfeito? um maldito monstro de negações aflictivas se visto com o olhar do passado. aqui davam-se os passos para o futuro grandioso, um futuro cheio de luz e dinheiro e bens essenciais. ora merda. merda para esta conversa. também nos tempos que correm há uns seres que vivem fechados numa jaula de pedra distantes do mundo, esses seres também pensam que podem ditar verdades absolutas para os ineficazes da vida, para esta massa linear de vencidos, que dorme nas imagens do crime que se repete diante dos seus olhos com a mais profunda ignorância da recusa, com a mais absurda inconsciência da vontade. porque já não se quer o impossível. quer-se o melhor dentro de determinadas conjecturas políticas e económicas e sociais mas que no fim de tudo não passam de tretas criminosas e come-se a morte com um sorriso inocente nos lábios, de preferência um sorriso suave de iluminado. como se fosse possível alguém encontrar a paz num mundo em guerra. como se fosse possível dormir tranquilo com os pesadelos da realidade a morderem o cérebro. ora merda mais uma vez. e merda mais uma. e ainda merda outra. há uns senhores com os seus fatos engomados e as suas pastas que agarram no pequeno ser que está deitado na cama solitária e discorrem sobre o seu futuro como se o seu sangue pertencesse a um banco a uma guerra a uma farmácia como se o seu corpo fosse uma potência nuclear fosse um sistema operativo passível de ser trabalhado, programado, eliminado, de acordo com o chamado desejo do bem comum. comum de quantos? a tempestade já não tem um rosto. a tempestade é um procedimento que a massa segue. e a tempestade diz: caminhamos em direcção ao fim, mantenham o sorriso de desespero. e a massa responde: sim, caminhamos em direcção ao fim, sim, mantemos o sorriso de desespero. porque o acidente essencial do homem é o seu início. a lei do mais forte desenvolveu-se no sentido que o mais forte ditou. mas os mais fracos sempre tiveram os números, sempre foram mais. se houvesse uma grande revolução com as armas que são os braços de certeza que os mais fortes cometeriam o seu suicídio, teriam a vergonha do seu falhanço total, mas nada disto importa, hoje veremos outra vez a morte em directo com o nosso sorriso de desespero nos lábios e estaremos contentes por ser na distância de um vidro que é metade do mundo. o bicho estava na sala da solidão. tinha um nome e tinha a programação do medo e da falta. sempre que reagia, os cientistas olhavam com atenção para ele como que a tirarem brilhantes conclusões, mexeu-se abriu a boca esticou um dedo coçou-se etc etc... eram os cientistas inteligentes do regime, perdão, do sistema. quando o bicho estava pronto para ser educado com uma linguagem séria e respeitável, uma senhora gorda ia buscá-lo à sua cama e levava-o para uma outra sala, a sala da educação. esta era a sala mais importante de todas as salas. aqui o bicho ficava com a sua realidade apreendida. uma forma camuflada de incutir ruína com a máscara da felicidade. ó meu cão, chamava-lhe o professor no início quando ele falhava, ó meu cão, és um burro parasita, não mereces nem a ponta de um chavo que aqui gastamos contigo, enfermeira-chefe, leve-me este anormal para a sala de transformação, este só serve mesmo para ser comido pelos que virão. e o bicho gritava: não, não, dê-me outra oportunidade. e o professor lá lha dava. a educação sempre foi amante do medo. o bicho lá ia fazendo progressos notórios e a sua capacidade de resposta aumentava a olhos vistos. era sem dúvida um belo exemplar. tinha um corpo forte. boas capacidades cognitivas. bons reflexos. estava a criar-se um cristo da idade nova. todos o guardavam com o maior carinho e ele ali estava tranquilo na sua cela solitária e inconsciente, sem saber dos muros e das guerras da história do tempo. um dia o bicho teve uma erecção em frente da senhora gorda que no maior de todos os escândalos chamou os senhores cientistas. remédio claro: descargas eléctricas nos tomates isto não é o tempo do desejo ó cão. e assim seguia o bicho a sua vida dentro da sua normalidade. era uma normalidade imposta por alguma coisa maior, mas também isso era um detalhe, era o que lhe metiam na cabeça. a vida do bicho era toda ela de uma virtualidade atroz. a senhora gorda começou a sentir uma certa empatia pelo bicho. estava sempre a mimá-lo. até houve uma vez que o apanhou a tocar-se e nem fez queixa nem nada, antes pelo contrário, ficou a ver o bicho com a sua erecção, depois pensou: ora que se lixe. chegou ao pé dele e disse: vou ensinar-te como se faz. e desatou a masturbá-lo com as mãos e com a boca até que ele se veio. o bicho gemeu com um prazer que não conhecia. a senhora disse-lhe: isto fica em segredo. o bicho nem estava em si mas concordou prontamente com a senhora. e depois a sala da educação... ora ele estava distante, o professor espantava-se com o atraso mostrado em todas as matérias e o bicho estava sempre com vontade de se retirar, nada lhe interessava mais na conversa do professor. o bicho chegava ao quarto, a senhora gorda entrava, sacava-lhe o sexo e lambia-o cheia de vontade. um dia ele atirou-a para longe, levantou-lhe a saia e, sem saber muito bem o que fazer, deu-lhe uma trancada por trás. a senhora gritou de prazer. estava feito o crime. arranjou-se e saiu. o bicho ali ficou no seu silêncio. era preciso acabar com aquilo. se fossem apanhados, iam directos para a comida. a senhora não o procurou nunca mais. ele compreendeu. voltou a dedicar-se à educação. o tempo passava e já era altura de outros passos para o bicho. todos ali sabiam que não o podiam manter preso por muito mais tempo. uma das fases do processo seria então a ilusão da liberdade, meter o bicho numa zona que ele considerasse livre dentro da sua cabeça, dar ao bicho a ilusão da escolha, isto era apenas uma sala que o edifício tinha, nessa sala recriava-se uma espécie de mundo antigo, cheio de gente clara e sem problemas, todos processados, meros programas binários de carne virtual. o bicho concordou com a opção sugerida e prometeu comportar-se à altura da confiança que lhe era depositada. é o truque mais baixo do poder. não há nada mais pornográfico do que a ilusão da liberdade. a ilusão da liberdade vive no patamar do sonho. ao controlar o limite do sonho, controla-se o limite do desejo, logo, a liberdade passa a ser uma repressão do pouco mais do que nada. são os truques silenciosos. homens da gravata que desfilam em linha recta com as suas pastas de couro e os seus chapéus. organização política da guerra. um ou mais seres de rosto conhecido estão sentados numa plateia gigante. diante de si desfilam as atrocidades. as atrocidades. como num sistema dito democrático assistimos a um desfile do exército. não se compreende a raíz filosófica do crime. como será possível que se assista a um desfile de máquinas de guerra? com a desculpa esfarrapada de que um exército é um garante da soberania. ora puta que pariu a soberania. puta que pariu as fronteiras e a posse. puta que pariu o poder e os seus homens. disfarçados com as máscaras assassinas da burocracia. tecnocratas corruptos do silêncio. mortos vivos. animais selvagens que apelam à carnificina. discursos fraudulentos que nada dizem sobre o vazio essencial das vidas. imagens. meras imagens. construções profissionais da verdade. palavras e corpos. religião. poder. merda engolida em silêncio. ligações nocturnas e obscuras. corrupção livre. superfícies planas. o rosto baço nos ecrãs de vidro. uma torrente incompreensível de palavras sem esperança. e assim seja. assim seja. assim será escrito a sangue em todos os parlamentos. onde se discute uma fome que não lhes pertence. onde se clama por um futuro que já não está nas suas mãos. e de repente, no meio da sua ilusão, o bicho grita. o bicho grita. o bicho grita e grita e grita e grita mais e mais e mais e mais. até que chegam os homens de bata branca e lhe enchem o corpo com sedativos. tem de voltar para a solitária. ainda não está pronto. e aguarda em silêncio que passe o tempo e lhe tragam novidades sobre a sua vida. o bicho começa a sentir-se com a necessidade de ser homem. a queda vem daqui. ninguém lhe pode dar isso. ninguém lhe quer dar isso. ser homem é perigoso.

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