quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

era uma vez. estava deitado no chão numa casa desconhecida. um silêncio inseguro. as mulheres sentadas choravam a morte de um velho. eu fumava muito com os nervos. deixava escorrer uma lágrima de vez em quando para não contrariar o que vivia. continuava deitado no chão. com a minha lágrima viajante que se dirigia para o solo com a força da gravidade. e fumava. o velho estava morto. eu já o tinha visto. à chegada. uma mulher agarrou-me na mão e disse-me: ele está ali. não me perguntou se eu o queria ver morto. não. agarrou-me na mão e levou-me ao espectáculo decadente do lugar. uma coisa natural na envolvência das famílias. as mulheres sentadas de volta do morto deitado na cama impecavelmente vestido. vi-o. era um rosto de cera branca com ramificações azuis que se dirigiam até aos cabelos. dir-se-ia que estava bem. para morto. a minha primeira impressão foi de que estava mais limpo e mais bem vestido do que eu. saí do quarto e deixei as mulheres nos seus gemidos de tragédia falsa e fui até outra divisão da casa. a minha infância foi ali. deitei-me no chão. fumava cigarros atrás de cigarros. tinha dormido pouco. descansei. só eu e o velho morto estávamos no mesmo ponto de vista em direcção às visitas. as mulheres choravam e eu fumava. uma mulher velha com os olhos cinzentos veio oferecer-me fruta. era uma maçã. não comi. estava enjoado. tinha feito uma viagem demasiado grande. ela disse: pois, não consegue comer não é? mas tem de comer, comer faz bem. eu disse: eu sei, eu sei, mas agora não consigo. ela deixou-me. ouvi-a entrar no quarto e desatar em convulsões lacrimais tão falsas como uma puta cabotina. desculpei-a. pensei com o meu cigarro: aqui é assim. continuei deitado com a cinza a cair em cima do meu casaco. devo ter dormido. acordei com um silêncio catastrofista. último homem no mundo. corri a lavar a cara. bebi água fresca da torneira. sabia a morto. lembrei-me: o morto. fui ao seu quarto. estava tudo muito mais tranquilo agora. acendi a luz. puxei de um cigarro e perguntei: queres? depois pensei: claro que não, estás morto. sentei-me e fumei um cigarro no meu mais profundo silêncio. a sua pele branca começou a transformar-se. ganhava reflexos alucinantes com o bater das luzes. quase que o escutava respirar. quase que o escutava falar. ou viver. ou como se nada daquilo se tivesse na realidade passado. como se eu tivesse podido dizer-lhe tudo o que lhe devia ter dito e que ficou entalado no fundo da minha cabeça. no fundo dos meus pulmões. e de repente tinha toda a minha vida para resolver. a vida passada e a vida futura. a infância distante começou a desfilar como uma armadilha diante dos meus olhos. e eu chorava diante do morto. e dizia: velho, velho, como podes ter morrido assim sem dizeres nada? como podes ter ido sem te despedires? como podes ter ido assim sem me teres deixado despedir? e vinha-me à cabeça o momento em que estivemos sentados à lareira num silêncio incomodativo. ou o momento em que o velho era outro e me cantava à janela e que me ensinava palavras. ou o momento das ameaças ou o momento da partilha de conhecimentos e da passagem do velho para o novo. e chorava e fumava. e pensava: foda-se, como podes ter sido tão distante do que não podes fugir, porque tu não podes fugir nunca do que és. e dizia ao morto: morreste. e perguntava: porquê? porquê? porquê? e as respostas não vinham. e ele não se movia. continuava com os reflexos da luz na sua pele de cera branca tocada por um azul escuro demasiado pacífico para que fosse possível voltar à vida. merda. se ao menos tivesse tido tempo. ou oportunidade. ou vontade. ou consciência. saí de casa e deixei o velho morto em paz. bem o merecia. é incrível como os fantasmas se apegam ao interior que pensa que controla tudo. de vez em quando surgem surpresas e os fantasmas acordam. trazem uma espada de fogo que ameaça as ilusões. andei pela rua. nasceu o dia. café. tabaco. umas palavras do homem do balcão que me conhecia. conhecer. que me tinha visto ali muitas vezes noutros tempos. umas palavras e aquele ritmo de quem não se sente à vontade para dizer as coisas da emoção. não fazia mal. eu também não estava para conversas. bebi outro café. voltei à casa. as mulheres começavam a chegar na sua preparação matinal para um dia que prometia emoções fortes. quem ficasse até ao fim, quem resistisse mesmo, talvez conseguisse ainda chorar. ora que bela vitória. talvez no dia que há-de vir lhes retribuam as lágrimas e a presença. muitas pessoas se juntavam agora na porta da casa. uns homens de fato escuro subiram e desceram com a caixa onde estava o velho morto. o lugar dos mortos era perto. levaram a caixa às costas. as pessoas seguiam a caixa do velho. muitas choravam. outras falavam. outras olhavam para as outras. eu ia atrás e fumava. falava com o velho na minha cabeça. ai velho, se aqui estivesses agora, o que ia ser desta gente? que motivos teriam para se encontrarem. e chorarem. e falarem. e verem os outros a chorar e a falar e a ver. velho sacana. aqui estou eu a chamar-te sacana e tu nem me respondes. deixei as pessoas entrar para o cemitério. fumei. o tabaco enganava o cheiro do lugar. um padre disse não sei o quê. entraram para uma capela. eu fiquei a fumar na rua. olhava para o lugar dos mortos com um certo fascínio. tanta coisa que ficou por viver. tanta palavra que ficou por ser dita. tantos que ainda tinham tanto para dar. tantos que já não davam nada. nada disso interessava. chegava a uma altura em que a linha parava. era assim. sentia-me estranhamente silencioso e em modo introspectivo. fumei mais uns cigarros e as pessoas começaram a sair da capela. começou a surgir a caixa de madeira que tinha o velho. aproximaram-se de um buraco no chão passando por outros. uns abertos e outros fechados. puseram a caixa dentro do buraco. pessoas choravam. gritavam a desolação da vida. o final. o animal chega a um ponto que pára. que o corpo abandona as lutas. que uma coisa maior vence a força do sangue e da respiração. fim. término. última paragem. fim da linha. fim da vida. não interessa. ó velho. estás condenado a acompanhar a minha cabeça até que te diga tudo o que não disse. as pessoas e os seus gritos. lágrimas. preto. rostos pálidos. afastei-me e vomitei aquela morte toda contra uma parede da capela. vomitei a noite passada e os dois cafés da manhã. os homens pegaram em pás e cobriram a caixa. uns abandonaram o lugar. outros ficaram até ao fim. à saída despediam-se aliviados. também eu saí dali. sem dizer uma palavra. velho. velho. ainda não sei onde estou hoje. temos falado muitas vezes.

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