segunda-feira, 20 de outubro de 2008

então agora vivo com o terror da cadeia. à espera do dia em que chegam, agarram-me, levam-me, enchem-me de perguntas para as quais não tenho respostas. ou tenho respostas a mais mas todas elas confusas. detesto explicar as opções da vida, principalmente quando as coisas se apresentam num ponto em que não há opções. a Antígona é um bom texto para alguns casos. como cumprir o que está escrito se sem sempre o que está escrito é justo? o que é isso do justo? as coisas nem sempre se apresentam como uma palete de cores, nem sempre se pode pintar com todas as cores do mundo. então o que fazer? agarram-se em duas cores e fazem-se os melhores desenhos possíveis, mas muitos ficam por fazer, muitos ficam por pintar. depois descobre-se a escultura, os desenhos ficam para trás. mas os desenhos são a regra. os desenhos são a regra e tu só manipulas objectos. há quem veja nesses objectos a projecção de um desenho. há quem veja figuras que se parecem com as referências dos desenhos. as regras ficam para trás de qualquer forma. nada a fazer. um dia eles chegam com um papel cheio de desenhos com uma enormidade de cores e feitios alheios a ti e levam-te. querem obrigar-te a desenhar. tu não sabes desenhar. não sabes e não queres. queres fazer esculturas. queres escrever poemas. não queres fazer nada que toque em criação. não queres um exílio. não podes ser obrigado a desenhar. chegam e levam-te. para um casulo de reinserção onde todos estão sentados com folhas brancas em frente e rodeados de lápis e pincéis e tintas. pessoas que lhes batem nas mãos para que eles desenvolvam a técnica. não quero ser preso por não saber desenhar. entre o carrasco e a vítima. quero escrever. espero que me levem tabaco. preso e sem tabaco. não vou aprender a desenhar nunca. eles chegam e levam-me. perguntas. exposições. juízes. amarras. celas. romance nenhum nisto. merda. dizer merda. falhanço assumido nas folhas brancas da vida. papéis amarrotados e atirados ao lixo. caixas de papéis que ardem na memória. que ardem com água. os meus não foram queimados. foram tornados pasta de papel e atirados para a sanita. tomaram um banho na banheira ao som de um tango. abriu-se a torneira ao mesmo tempo que o olhar. disse-se a palavra foda-se umas vezes seguidas. fizeram-se promessas que não voltariam a ser faladas. a vida mudou nesse dia. ouvir sim quando se sabe sim mas se sonha não. dias marcantes na vida. ausências de sentir durante muito tempo. tudo tardio. uma infância guardada num aquário de vidro protector. cicatrizes poucas. teatro a surgir na vida e a impor-se como uma necessidade estupidamente vital. inserido num meio onde a pessoa se esquece que é pessoa. um meio de objectificações referenciais. quem é quem. é como o jogo. mas eu não era ninguém. era o que era. tinha uns cadernos com umas frases e sem desenhos para mostrar. num mundo de desenhos eu tinha palavras que eram esculturas. esculturas em movimento com os corpos projectados numa sala de teatro. sonhos rituais. incompreensões. visitas à ponte. cigarros na ponte. aquela ponte cinza que se impõe na cidade da névoa. regresso a casa. aqui começou a regra dos desenhos que eu não queria fazer. drogas e amores. alucinações. medo. mãos dadas na rua com o dia a nascer e com os pássaros a cantar. a verdadeira infância foi aqui. esta verdadeira infância louca foi aqui. se me levarem preso por não saber fazer desenhos. posso dizer que amo. posso dizer vão para o caralho.

3 comentários:

Rini Luyks disse...

Olha, Pedro, essa de deitar papel na sanita é boa, mas só quando vives num andar superior do prédio. Senão (e apesar de a sanita aparentemente estar bem aparafusada no chão) pode acontecer (já me aconteceu...) que um dia te apareça uma borra de cor, composição e cheiro indiscritível.
Já partilhei um segundo andar com um professor de alemão que começou a despejar na sanita a areia suja da sua gatinha (realmente, isso não se faz). Em pouco tempo conseguiu hostilizar os inquilinos do prédio todo. Só que ele andava muito bem vestido e eu era um músico de rua esfarrapado: os olhares de ódio eram todos para mim!
Mas vinguei-me! A gata chamava-se Celeste, um nome ridículo, chamar Celeste a uma gata, que mariquice é esta, haha! Decidi rebaptizá-la. Tratei-a por Pushkine e ela gostou. Logo ela começou a passar mais tempo no meu quarto, já não obedecia ao chamamento "Celeste, vem cá!" do dono. Vivemos momentos bonitos, eu e a Celeste. Fiz uma sessão fotográfica com ela, até gravei uma cassete com uma conversa íntima... mais não posso revelar.

Pedro Fiuza disse...

hehehe

Anónimo disse...

Vivemos momentos bonitos, eu e PUSHKINE, claro!