quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
Às cinzas
Nem todos na aldeia me olhavam com bons olhos. Perfeitamente normal. As pessoas são enigmas. Apesar de tudo conseguia ter uma vida regular e era até bem aceite em certos círculos. Os problemas começaram quando me apaixonei pela filha do Governador. Sou de famílias humildes. Nunca fiz nada para ocultar isso, nem vergonha, nem orgulho, o nascimento é um acaso. A filha do Governador aterrou na minha vida da mesma maneira que eu certamente aterrei na dela, como uma explosão louca de realidade. Estava eu na altura a passar por uma das muitas crises que me acompanharam sempre. Acabado de sair de uma desilusão sangrenta, andava meio apático, incapaz de rir ou de chorar, com uma vida quase nula. A filha do Governador. A tal que brilhava no meio das suas amigas. Filha única, protegida como um tesouro, a jóia mais preciosa da sua casa. Eu, o rei de todas as incoerências, magro, músico de rua das cidades distantes, batido da vida, mal vestido. Quando a vi fez-se luz na minha existência. Comecei de repente a acreditar em coisas. Na aldeia era muito difícil encontrar as pessoas, só os velhos e os alcoólicos frequentavam as tabernas. Só no Domingo na missa se podia encontrar o povo. Cada família tinha a sua fila marcada como os lugares numa sala de aula. Era assim. Natural. Eu nunca ia à missa. Passei a ir. Passei a ir todos os Domingos ao lugar onde todos se viam. Olhava-a de longe. Não tinha tido ainda a coragem de lhe falar. Estava decidido a fazer contacto mas o medo impedia-me. Fechei-me em casa dos meus pais durante três dias seguidos. Escrevi milhares de cartas que rasguei. Mas houve uma. Uma só carta que guardei. No Domingo seguinte, a missa. Esperei que todos se levantassem na altura da comunhão, fui até à sua bolsa, atirei com a carta lá para dentro, desapareci. Nesse dia, a minha cabeça revolveu-se com ansiedade e com vergonha, mas a carta estava entregue. Seria a primeira. No Domingo seguinte a mesma coisa. E no outro. E no outro. E no outro, estou eu a meter a carta na sua bolsa, olho para ela, ela olha para mim, tarde de mais, a carta está lá dentro e eu estou desmascarado. Ela ri-se. Eu devo ter-me tornado de um vermelho fogo. Que momento. Não voltei a ir à missa. Fiz-lhe chegar mais uma carta através de uma das suas amigas e voltei a entregar-me à vida parva das tabernas com fugas constantes a cidades diversas. O tempo passa. Lembro-me que chegou um Verão. O Verão. Voltei para a aldeia. A propriedade do Governador tinha um lago onde a sua filha e as amigas se banhavam. Eu sabia. Também já lá tinha ido às escondidas. Ela não me saía da cabeça. Aquele sorriso que me tinha batido daquela maneira. Tinha de voltar a vê-la. Tinha de falar com ela. De estar com ela. Beijá-la. Senti-la de perto. Entrei na propriedade do Governador e fui até ao lago. Fiquei de longe a olhá-la, rindo-se no meio das suas amigas, com o seu brilho de sempre. O meu amor, primeiro e único. Nessa noite chorei e tive uma insónia adolescente. Não conseguia comer nada. Os meus pais estranhavam. As minhas entranhas consumiam-se de uma forma devoradora. Era um fogo. No dia seguinte voltei ao lago, aproximei-me e chamei-a. Ela veio até ao pé de mim enquanto se tapava. Chegou. Agarrei-lhe na mão e disse-lhe: amo-te. Meu deus. A mais absoluta das verdades. Amava-a. A filha do Governador. Um amor impossível como o amor dos grandes livros. Um amor cavalgante, total, incendiado. Amo-te. Uma expressão já demasiado batida mas que eu sentia com o corpo inteiro. Ela ficou nervosa com a minha confissão. Foi um impulso. Dei-lhe um beijo na testa que foi mais roubado do que consentido, disse-lhe: amanhã a esta hora estarei aqui, preciso de ti como o mundo precisa da luz, não me lembro de ter momentos em que não me visites tudo o que sou, amanhã a esta mesma hora, amo-te, amo-te, amo-te. Virei as costas e fui-me embora. Uns apertos no estômago e umas turbulências na cabeça. Não importava, nada havia a fazer. Teria de estar ali no dia seguinte com toda a verdade que possuía. Sempre reagi por impulsos, uns foram bons e outros nem tanto. O primeiro impulso de ir ter com ela tinha sido fácil, relativamente, mas e o impulso seguinte, o impulso já não impulso??? Esta foi a minha maior noite de angústia. E falo de muitas noites de angústia que me acompanharam sempre, em que estive solitário, angustiado e comigo mesmo. Esta foi a noite que me meteu mais medo. Comparável a esta só a nossa primeira possibilidade de amor. Nesta noite não dormi. Saí para a rua de manhã e acompanhei o despertar dos pássaros com uns cigarros. Inventei poemas na cabeça. O tempo do amor... Nem tinha ainda bem a noção das consequências que estes tempos haviam de ter mais tarde. Não importa. A luz era eu quem a tinha, amava a mulher mais bela de entre as mais belas, tinha o meu tesouro, a sua família possuía uma jóia mas o amor amor era o meu, só eu é que a queria daquela maneira, era eu que lhe pertencia. Fui no dia seguinte com um medo que não era bem um medo, era um receio absoluto de falhar, queria apenas falar-lhe, dizer-lhe tudo, despir o pensamento, se é que o havia, mostrar-me todo, era isso que eu queria. Corri para o lugar combinado, encostei-me a uma árvore e esperei um pouco. De repente chega ela. Linda. Branca. Luminosa. Chega como quem não sabe ao que vai. Eu mordo-me de medo e de fascínio. Assim que me vê pára e não diz nada, fica imóvel no meio do verde. Tenho de ser eu a falar. Detesto falar. Sempre detestei. Mas ali tinha de ser eu, era eu que desafiava, eu e o meu impulso medroso, éramos nós que tínhamos de assumir o primeiro passo. Olho para ela envergonhado, roo-me por dentro, mas avanço na sua direcção, digo-lhe alguma coisa sem sentido nenhum, e caminhamos. O caminhar foi a minha salvação. Eu queria dizer-lhe que a minha vida era dela mas isso foi impossível. Caminhámos um bocado até que fizesse um círculo e estivéssemos no mesmo lugar em que tínhamos partido. Aí sim, era necessário dizer alguma coisa forte, mas o quê? Não me vinha nada à cabeça, tudo era amor e quadradinhos. Tudo era perfeito. Ela ao meu lado por entre as flores, os pássaros que cantavam, o riso das raparigas ao longe, tudo era poesia. Maldita poesia. Sempre a odiei. E agora? Que lhe vais dizer? – perguntava-me eu sem saber que resposta havia de dar-me. Chegou a altura e mandei um: quando voltamos a ver-nos? Ela sorriu um depois. Foi cada um para seu lado embora eu tenha esperado vê-la desaparecer por entre as árvores. Encontrámo-nos mais umas vezes comigo a raptar a sua tranquilidade do lago com as amigas, era assim que estava instituído, seria eu o criminoso. Um dia depois de mais uma volta roubei-lhe um beijo que ela não deixou que fosse roubado, foi um meio beijo. Nesse dia fui para casa a correr e tudo me fazia uma certa confusão. Era como se desconhecesse tudo. Pensava naquele momento como se fosse o último momento da minha vida, engano puro, só queria era estar lá no dia seguinte. Os enganos da idade. O Verão acabou. O lago ficou frio. Nem amor nem amigas de amor. Uma tristeza à flor da pele. Deixámos de nos ver um tempo curto. Um dia estou eu no meio da rua e vem ela na minha direcção. O medo cá dentro. Ela acompanhava a minha vida de uma maneira louca. Só sei usar metáforas até certo ponto. Um dia, num outro Verão mais real, vamos os dois até um lugar, um passeio no início, sentamo-nos e falamos de coisas, os dois no chão de cimento, beijamo-nos. Eu troco juras reais e eternas por algo que não sei o que é mas que quero demasiadamente. Beijámo-nos sem limites de um e de outro e juntámos as mãos. As mãos. Mãos que me fizeram perder para sempre num mundo de fantasia e de sonho. O tempo passa sempre sem que se repare bem nele, simplesmente passa, nada de estranhar. Acompanhámo-nos durante uns tempos, quase que pegados pelas mãos e por momentos absolutos. Nada pode ser perfeito. O consentimento. O Governador. Homem cinzento como todos os homens que perderam a felicidade. Eu era apesar de tudo livre. Eu sou, apesar de tudo, livre. Que se acabem com as metáforas, vivo agarrado a coisas mas não tenho medo de ir lutar por uma causa que me diga algo, sou um romântico do mundo imperfeito, vivo num tempo de caos e também o sinto em mim, posso fazer o quê? São assim as coisas, todos já quisemos fazer crimes loucos por coisas impossíveis. O Governador teve conhecimento dos nossos encontros de uma maneira que ainda hoje considero ridícula, eu não quero falar disto, já não me interessa falar do Governador, só quero falar da sua filha, mergulhada no medo de não cumprir o sonho que lhe tinham criado, a filha do Governador foi perdendo o seu interesse pela minha loucura, o que é normal, é bastante normal, não tenho onde cair morto, quer dizer, morto caio em qualquer lado, as pessoas já não vivem para o amor e uma cabana, o mundo já não lhes dá tempo. Tenho dores constantes com a impossibilidade. Eu não me importo de ser um simples aprendiz de feitiçarias, é-me inevitável, e por muito que queira mudar a minha vida para a tornar possível... as feitiçarias vivem aqui. Já desisti de lutar com as feitiçarias, tive de as aceitar como naturais. Ora quem é que pode explicar isto a quem te pede o impossível? A quem quer que mudes a pele, está bem que é mudar a pele por uma causa maior, mas não seria melhor haver umas cedências de parte a parte? Eu acho que sim, mas há pessoas para quem isso não é normal. Os governadores deste mundo. Na verdade, não sei quem quererá um mundo melhor, todos construímos a desgraça nossa e alheia. É o a culpa não morre solteira. Enfim... o Governador começou a exercer uma certa pressão que me deixava bastante revoltado, claro, devorador de sonhos, a pressão que desconhece a diferença só me pode revoltar. Problema nenhum, não deixámos de nos ver durante anos. O tempo pode reagir de várias maneiras, nem todas são boas, são o que são. Fui esgotando possibilidades que na verdade nunca tive. Chega a uma altura que tens de mudar alguma coisa no desenvolvimento da vida. Vais abrindo portas que te façam aproximar do que pretendes, anular distâncias, isso nunca ninguém reparou, sempre que abres portas fechas portas, o mundo funciona assim, chega a uma altura que estás próximo mas sem portas para abrir. Tens de partir, voltar às distâncias. Vais para outro país com duas malas, uma tem roupa e outra tem sonhos, deixas uma parte de ti com quem amas e nessa parte ninguém toca, acreditas sempre num regresso, mas as distâncias são tramadas, as distâncias e o tempo e a ausência. Não sei se as pessoas crescem com o tempo, mesmo que não cresçam, o que é certo é que se desenvolvem e chegam ao ponto em que não há regresso, as alturas decisivas da vida. A filha do Governador começou também a exercer pressão, mais pressão do que apoio. Só te dizem que tens de resolver a tua vida, tens de resolver a tua vida, mas e o que muda na de quem te diz isso que te dê um sinal de claridade? Muito pouco ou nada, ainda te encontras com medo que o Governador descubra aquilo que já todos sabem, que até ele mesmo sabe. Tudo isso cansa e deprime, parece que tens de resolver a tua vida para fazer a vontade ao Governador, para poderes ser apresentado na sua casa com tranquilidade, isto tira-te qualquer dignidade que possas ter. O mundo é feito de diferenças. Não estou a desculpar a minha conduta. Eu sei muito bem da minha loucura, eu sei muito bem o que quero fazer, só não sei é neste momento como fazê-lo, está dito. A vergonha sou eu quem a tem, a filha do Governador podia muito bem estar descansada, ela sabia o que tinha. Começou a atirar-me com a expressão vítima, a expressão que mais me incomodou em toda a minha vida, eu não me faço nem fiz nunca de vítima, há contextos para tudo, e há alturas em que tens de tomar decisões que sabes que são erradas, e tens tudo para ser feliz de acordo com as normas da moral e dos bons costumes e da honra e do orgulho, mas mesmo assim cometes erros impensáveis porque a tua felicidade não passa por aí, nem tu sabes por onde passará ela, mas sabes que não é por aí. Andas à deriva por continentes alheios, não sabes muito bem onde te metes, mas metes-te e a partir do momento em que lá estás... deixas ir. É o resumo da minha vida. Não há vitimização nenhuma neste ponto e estou-me nas tintas para quem me programou uma vida, não acredito em coisas divinas e a imagem do sofrimento andam muitos com ela pendurada no pescoço, é a tradição ocidental, a educação. Houve um homem que sofreu muito e no fim morreu para nos salvar. Se estivessem era calados quando metem isto na cabeça das criancinhas mais lhes valia. Pois a verdade é que eu amo a filha do Governador, nunca deixarei de amá-la, há crimes pelo meio mas a minha vida é feita de crimes, não tenho a visão romântica do criminoso, é o caminho natural de alguns, perpetuar crimes, procurar sonhos, dois lados da mesma moeda que na verdade chega ao final e não vale nada. Quanto menos possibilidades eu tinha mais o seu desencanto aumentava, quanto mais o seu desencanto aumentava mais eu me afundava nas minhas lamentações tontas e no meu suicídio lento, vida de tabernas, poesia derrotista, digamos que vivia mais intensamente o caos do mundo e só me comovia com a felicidade, com a felicidade e com a beleza, já não a vivia, já me bastava, era-me suficiente que a partilhassem comigo, a felicidade que cada vez mais tinha a certeza que não iria viver, a beleza que cada vez tinha menos capacidade de construir. Já não tinha impulsos. Quando os tinha deixava-me ficar quieto a meditar possibilidades negativas e não conseguia reagir ao caos que se instalava na minha cabeça a cada instante. Era o meu problema. Estava longe e não estava inteiro. Eu sabia isso com tudo o que era. Mas o regresso era ainda impossível. O Governador não estaria ainda pronto. Todos temos desafios na vida. O meu era chegar ao ponto em que a filha do Governador se pudesse orgulhar de mim, mas quanto mais procurava isso mais distante parecia do seu orgulho. Talvez esse orgulho fosse realmente impossível. Nunca pretendi ser um comerciante de ilusões. Era assim, músico das ruas, procurava tocar nas pessoas com o meu canto de angústia, por vezes conseguia, por vezes não, mas era esse o meu caminho, podia afastar-me dele mais ou menos tempo, mais ou menos vezes, mas era lá que voltava sempre. Desde pequeno na aldeia que tinha sentido esse impulso, aprendi música nas tabernas e queria estar sempre ao pé dos grandes que metiam medo aos pequenos. Depois comecei a abrir o meu círculo de acção e passei a ir a outros lugares, cidades, países, pessoas, amigos. Gente que me mostrou livros e outras músicas. Voltei sempre à aldeia com a companhia dos livros e o meu interesse pelas tabernas passava apenas por um hábito alcoólico e por uma necessidade louca de tabaco. Havia de fazer o quê? Era um perdido, perdido não, um desencontrado, a quem tinha acontecido o melhor e o pior que poderia acontecer a alguém assim, apaixonar-se pela filha de um Governador. Se fosse alguém mais próximo de mim certamente compreenderia a dificuldade e seríamos uma equipa, duas pessoas lutam sempre melhor do que uma, acho eu, desde que não lutem entre si por questões de poder, desde que formem uma equipa blindada, que não se exponha à erosão do caos do mundo. Com a filha do Governador descobri realmente um lado absoluto da vida. O meu corpo crescia. Eu sentia-me gigante. Mas e quando chega a altura em que tens de pedir vida? Aí há algo que morre ou que adormece fundo nas coisas, a tristeza instala-se, não te deixa comer nem fazer nada, são os sintomas da paixão mas com uma causa diferente, a maldita tristeza. Chegar a esse lugar em que sabes que a perdeste para sempre, e que talvez o facto de nunca teres ido a casa do Governador na companhia da sua filha não seja uma questão de vergonha, seja uma questão de nunca se ter acreditado realmente na possibilidade, e tu sempre teres no fundo sabido disso. Há neste ponto uma derrota que te deixa marcas profundas, aqui é quando deixas de acreditar em ti. Porque realmente o facto dessa ausência de laços ao fim de um tempo deixa de ter uma explicação que seja plausível, quando tem de haver luta é porque tem de haver luta, não se pode fugir para sempre ao inevitável a não ser que não seja inevitável, e que se der para o torto queiras manter uma qualquer fachada que não provoque instabilidade nos alicerces sociais familiares, afinal de contas um Governador é sempre um Governador e um criminoso será sempre um criminoso, por muitas redenções que tenha e mesmo que já não pratique crimes, a história não se apaga, tem é muitas interpretações. O tempo ia passando e eu ia-me sentindo cada vez mais velho, é preciso dizer que eu não era ainda velho, era apenas como me sentia, tinha um apelo por dentro que me queria fazer regressar e agarrá-la e lutar com o Governador, fazê-lo chegar à conclusão óbvia que não podia mudar a vontade da sua filha. Mas ao mesmo tempo que sentia este apelo cada vez sentia mais o medo de que a vontade da sua filha fosse cada vez menos a minha, que ela quisesse uma vida tranquila e não uma vida absoluta. Uma vida absoluta é um risco que nem sempre corre bem. Uma vida tranquila nunca corre bem, vai correndo. Mas eu também queria ter uma vida tranquila, mas não conseguia. E o apelo cá dentro que se ia tornando um grito mudo, uma angústia de querer partilhar coisas que não podia, porque se voltasse não podia voltar para o pé dela, teria de inventar outra vez um processo de diminuição de distâncias, de abrir umas portas e fechar outras, nunca nada podia ser claro, voltaria, e continuaria tudo na mesma, debaixo das barbas do Governador, tudo por assumir, sem provocar safanões nos alicerces da família e sem baixar um qualquer estatuto. O que é um estatuto? É uma fraude. Não há estatutos neste mundo, há pessoas. Pessoas diferentes. Ninguém sabe se o problema está no crime ou na sua definição. Voltando ao tema do regresso. Regressar para quê? Era uma altura difícil a que se vivia na aldeia, regressaria para fazer o quê? Para me enfiar em casa dos meus pais? Para me voltar a dedicar à vida parva das tabernas? Para me tentar tornar numa pessoa conhecida às custas do meu trabalho suado, num músico de renome? Eu não era assim, eu era músico de rua, era isso que me dava sentido!!! O apelo era portanto reprimido. Contrariava pela primeira vez na vida um impulso que tinha, um impulso gigante, um verdadeiro grito que me podia voltar a fazer sentir vivo mas que eu reprimia até me esquecer de mim. Não sabia muito bem porquê, talvez por um medo terrível de que chegasse lá e nem sonhos nem realidade, a filha do Governador tinha o seu plano de vida e esse plano não contemplava imprevistos, ora eu... o rei dos imprevistos, com um trabalho de imprevistos, com uma mão cheia de sonhos que apesar da minha pouca idade se iam tornando cada vez mais impossíveis, eu estava um tipo batido, ela continuava imaculada. As vezes que me atirei com a cabeça contra as paredes por medo de a ter de alguma forma conspurcado, de ter abanado o seu descanso. As vezes que me massacrei por ter olhado para ela pela primeira vez e ter reagido ao impulso de ter ido falar-lhe. As nossas vidas teriam sido tão diferentes, a sua mais calma certamente. Eu sou dos da luta, nada posso fazer contra isso. Mesmo hoje, apesar do tempo, não sei se lhe fiz bem. É que não tenho mesmo a certeza de ter-lhe feito bem. E massacro a cabeça. E massacro a cabeça porque do outro lado não vem nenhum som, só recebo medo, só há medo, só receios. É compreensível, já tive muitas possibilidades e já perdi as muitas possibilidades que tive. Já me enganei de mais. Mas é que quando tens o vício da luta no sangue é muito difícil controlá-lo. Tornas-te numa carta fora do baralho com a maior das naturalidades, já nem precisas de esperar, tudo se torna previsível, tudo se torna aborrecido, aprendes o lado negativo do jogo e consegues prevê-lo com uma antecipação louca de jogadas, mas só o lado negativo, só antecipas a visão da destruição, chega a uma altura em que nada te causa espanto, andas encostado pelas paredes a ouvir o som das casas e a perguntares-te se os que vivem dentro serão felizes e se são felizes como será que o conseguem. A culpa disto tudo é de onde nasceste, cada vez tenho mais certeza disto, quando és educado no caos é muito difícil fugir ao caos, podes ser capaz desde que sejas forte, mas eu nunca fui forte, sempre fui inseguro, fiquei com o pior do caos, pouca luz na infância, problemas reais demasiado cedo, o que estarei para aqui a dizer? Isto é tudo treta. A verdade é que compliquei a minha vida desde cedo, é só isto. Problemas na infância todos tivemos, os problemas da infância... esse vício horrível da psicologia. Os fantasmas da vida ultrapassam a infância, muitas vezes são frustrações da juventude, ou da idade já adulta. Eu não sou defensor das psicologias. À filha do Governador dediquei-lhe músicas, não lhe dei os presentes caros do mundo, dei-lhe bocados de mim. Rasguei-me pedaços. É natural, era a minha forma de mostrar que a amava, ela era a minha inspiração louca, aprendi uma sensibilidade que me mudou tudo com ela. Poemas de dimensão impensável. O seu nome nos meus olhos. Enfim... se o Governador acha que ela era ainda uma criança quando nos conhecemos é porque me achava já demasiado adulto, pura ilusão, eu ainda não sabia nada. Só depois me veio esta tristeza. Quando estava com ela tudo era perfeito mas quando não estava, ainda hoje é assim, parece que me falta vida, ando pelos lugares, bebo demasiado, toco sem inspiração nenhuma, acho que já não consigo tocar nas pessoas. Perdi um brilho que talvez não tenha tido nunca. Uma estrela que me guardava e me iluminava os caminhos no meio do caos. Porque eu também tinha os objectivos da tranquilidade absoluta. Eu também os tinha. E não sei quem destruiu mais quem. Ao fim deste tempo todo sinto-me completamente gasto com os desenvolvimentos. Não me defenderam. Já me estou a repetir demasiado. Amo uma mulher. Isto deveria bastar para ter uma casa e escrever livros. Isto deveria ser suficiente para ter crianças que te fizessem rir na manhãs com uma felicidade incrível. Amar uma mulher. Isto deveria ser o bastante para que o Governador baixasse as suas armas e conhecesse um outro universo. Espero que o fogo não nos faça arder na sua combustão lenta e dolorosa. Não quero ser queimado vivo. Quero acordar de manhã ao seu lado, com a sua cara de sono, branca, cheia de luz, quente, confortável, grande, a abrir os seus olhos limpos e a ver-me e a rir-se e a perguntar o que estou eu a fazer e eu a dizer que só estou a vê-la. E só vê-la já é tanto. Que nada disto seja incendiado pelo mundo. É que o mundo de vez em quando prefere pregar partidas a deixar que as coisas corram como devem correr. Estou a acabar com as metáforas, se eu e ela algum dia nos separarmos é porque este mundo é realmente impensável para ser vivido, é porque não é mundo para ter filhos. Ainda hoje escrevo cartas que não sei que resposta irão ter. Posso dizer que sou um escritor de cartas. Se pudesse viver de escrever cartas... não tocaria música em nenhum lugar do mundo. Continua provavelmente numa próxima vida...
colocado aqui por
Pedro Fiuza
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
diz-me quem é o Governador q eu nunca mais voto nele!
Belo texto! :)
Enviar um comentário