quarta-feira, 8 de julho de 2009
carta à mãe
o meu dia já vai longo na cabeça. talvez menos longo do que eu desejaria no corpo. estou entorpecido. tornei-me num bruto. naquilo que não queria nunca tornar-me. tenho pensado muitas vezes nas nossas lutas com o mundo. na maldita sobrevivência. tenho pensado muitas vezes nos sonhos de criança e depois no que esses sonhos se tornaram. uma espécie de amontoado de pó. estou um caco. provavelmente vais reparar nisso quando me voltares a ver. estou um caco pouco recomendável. pareço um soldado de uma guerra de dentro. sabes que sempre fui um problema. mas é assim. sou um problema com pequenos rasgos de luz marcados na vida. só agora é que já não acredito mais que essa luz volte a visitar-me. nem a deixar marcas. nem a deixar rastos. ultimamente é só feridas. também sei que faço por elas. também sei que a maior parte das vezes sou eu quem as chama. é aquela conversa que a avó tem sempre sobre o facto de eu me destruir aos poucos e constantemente. sabes o que acho que se passa agora? perdi tudo o que tinha para perder. sabes que eu preciso de sonhos. sempre precisei. vivia no meio deles. tantas vezes contra aquilo que tu dizias. mas era assim... as coisas lá se iam resolvendo, muitas vezes apenas por puro milagre, ou sorte, ou coisa que o valha, por imposição do destino. talvez eu tivesse a mania que era especial. talvez eu tivesse a mania que podia lutar contra o inevitável. talvez tanta coisa que nem sei muito bem como fazer análises deste estado. é um estado assim de vazio. sabes quando a prioridade máxima era fugir da violência das coisas? por vezes lembro-me disso. a violência perseguia os nossos passos. ia atrás de nós para todos os lugares. a violência. o desprezo. o descaramento. a fome. o não ter nada e ser feliz com isso. numa ilusão qualquer de que tudo se iria resolver. fosse lá como fosse. e as coisas iam e vinham. umas vezes mais e outras menos. era assim. por ciclos. o monstro desapareceu e nunca foi necessário. foi a alegria absoluta. o monstro que agora precisa de amigos e de filhos. deve sentir-se demasiado solitário. mas não sentimos todos? a solidão é o que nos ocupa. já não percebo as ligações com esse lado. prefiro admiti-lo como um mero fantasma. uma referência ausente. mas o tema não é este. estou a preparar-me para ir aí. e tenho medo. voltei a ter medo. sabes que sou um impulsivo irreflectido. sou assim. não gosto de premeditações e custa-me planificar a vida. sou aberto ao acaso. deixo-me levar facilmente por energias de coisas. sejam elas boas ou sejam elas más. agora tenho de ir aí. já não há nada a fazer. nem sei onde vou ficar. é como se me sentisse um intruso em todos os lugares que já não são meus. claro que é uma sensação parva. os lugares são pessoas. eu é que talvez me sinta demasiado um não lugar. como se tivesse perdido a terra e me tivesse tornado num ser demasiado aéreo. as desilusões são tramadas para a cabeça. também tenho andado a pensar em processos de morte que não sejam muito descarados. algo do estilo morte lenta. de certa forma já é aí que me encontro. esta cena lixou-me a cabeça toda. estou numa inquietação constante. mas é assim, cavei o buraco, o buraco vai-se aprofundando e não sei se tenho unhas para espetar na terra nem força nos braços para voltar a subir. poderia fazer um apelo à tua calma e à minha. o problema da calma é que o mundo não a tem. o mundo não dá tempo. o mundo segue o seu curso cada vez mais rápido, mais fugaz, mais cheio de atrocidade. já viste que nunca pudemos parar para pensar nas coisas a sério? tiveram de se assumir coisas e arranjar soluções sempre improvisadas? de repente andas por aí e tens dois filhos e desenrasca-te. do outro lado nunca veio nada. do outro lado vinham as festas e os amigos e as pessoas que não acreditavam que fosse realmente assim. mas era mesmo. era tão assim. era demasiado assim para que realmente fosse fácil acreditar. e a imagem do regresso à casa cor-de-rosa? aquele vazio? tudo o que restava desmontado? jantar sentados em caixas de cartão a rir às gargalhadas da situação em que estávamos. era possível rir disso. era possível bater no fundo e ver isso como um lado positivo. como uma etapa. tenho andado a pensar nesses momentos de uma maneira estranha. acho que na realidade nunca os absorvi. ficaram-me aqui como uma construção gigante de uma revolta qualquer. contra tudo e contra todos. conseguia rir-me mais na altura do que hoje. era a magia da inocência. pensava que éramos únicos. que não havia mais mundo além disso. hoje é diferente. sei de coisas. que coisas são essas não importa. sinto-me gasto. é importante que saibas disto. sinto-me mais gasto do que alguma vez senti. não estou a dizer que vá cometer suicídios ou outras soluções descabidas. nunca mais acordo em hospitais. essa promessa está feita. a memória da noite mais absurda desta vida. olha, é assim, transporto a cruz comigo. as razões são sempre as mesmas para estas minhas crises. amor, dinheiro, trabalho, vazio, sem rumo, loucura, impulso. os pais devem sempre orgulhar-se dos filhos. e olha, tornei-me numa coisa que não pode proporcionar orgulho. nem sei o que ando a fazer. é um ponto de saturação. um ponto de tensão constante. estou cansado. estou mesmo cansado. preciso de dormir. preciso de paz. estou quase a chegar.
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Pedro Fiuza
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1 comentário:
...."talvez eu tivesse a mania que era especial"...
Amiguinho tu és especial! Disso não há duvida, olha para ti e percebe isso!
Foi te emprestado um corpo e muitas faculdades cognitivas e sensitivas. O que acontece é que nós tomamos isso como garantido, é como se fossemos crianças em ponto grande mas agora os brinquedos são outros e continuamos a fazer uma "birra" se a vida não nos corre de feição, "se o Papá não traz um novo brinquedo".
Amiguinho para de dramatizar e vive o que há para viver com a consciencia de que és especial! Já reparaste a miséria que existe no mundo?! e existem pessoas que conseguem aceitar a sua miséria, a sua condição, e viver a vida como tem de ser vivida.
Não há como não aceitar amigo!
Espero tomar um cafézito contigo.
Abraço Grande,
Carlos
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