quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
encontrava uma imagem de uma estrada, era noite, não, era final de dia. ainda havia um pouco de luz. uma tonalidade laranja avermelhada e escura que se apropriava do papel. os olhos fixavam-se na imagem da estrada. era um momento silencioso. o que quereria dizer tudo aquilo? naquele momento. ao andar pela rua. o corpo que se dobra e que apanha um simples papel rasgado de algum lugar. uma estrada. o silêncio. a luz. de repente, às custas de uma concentração absoluta, ela entra no universo da imagem. está na estrada. descalça caminha no alcatrão frio. é noite ali. acho que já vimos esta imagem em vários filmes. o silêncio. nada se passa naquele universo e mesmo a estrada parece não ter início nem fim. é uma linha recta. há um ponto nessa linha. é ela. descalça. olha em todas as direcções possíveis e começa a sentir medo. é um medo sujo. transpira. a respiração acelera até se tornar impossível de manter. cai ao chão. arrasta os joelhos despidos sob o alcatrão frio. os joelhos vão-se rasgando. é já o osso que se arrasta no alcatrão frio. depois as mãos. as mãos vermelhas. depois os braços. os cotovelos soltam a sua armadura de pele. tudo sangra. depois os ombros. depois já não rasteja. é o corpo que se contorce sob o alcatrão. depois já é apenas uma massa informe de vermelho líquido. uma palpitação. um saco de despojos de uma guerra sangrenta. foi um acidente. de certeza que foi um acidente. quando se altera a cabeça em volta de uma falcatrua da natureza. quando o sangue espreita pelos braços. quando se morre trinta mil vezes por dentro do cérebro. quando línguas répteis tomam conta do olhar. quando o olhar se torna explosivo porque não tem um buraco no chão. foi um acidente. um mero acidente da natureza que atira o corpo vulnerável para dentro de uma imagem. um acidente que transforma a imagem numa morte lenta. numa carnificina alheia. crime. subversão. apatia. crueldade. maldade inata. ela descalça no alcatrão frio. o silêncio envolvente que faz estalar os tímpanos. o fumo. a loucura. as lágrimas que lavam a massa vermelha não natural do seu rosto comido. era uma imagem de uma estrada. corpo dobrado que apanha um papel. o chamamento. velocidade. buraco negro que atira a carne para o vazio. noite. noite. foi um acidente. um mero acidente. sangue que escorre pelo chão como um rasto de presa que foge de um predador maior. um predador maior que é o desconhecido. que tem o rosto branco do nada. que tem a luz pornográfica de toda a merda engolida ao longo do tempo. e haja sangue e haja dor e haja circo. as mãos do mundo atiraram-na para dentro de uma estrada que era apenas uma imagem de abandono. o acidente da noite tornou o seu braço numa cicatriz de ruína. silêncio. silêncio agora. muito silêncio. a loucura há-de vir beijar-lhe a carne crua. ela morta no alcatrão frio da noite. para que lado vai a estrada? para que lado? para lado nenhum. tudo deixará de respirar algum dia.
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Pedro Fiuza
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4 comentários:
Um Asphalt Tango, dançado em silêncio...
e que tango... e que tango...
Que tal um novo livro, Pedro!?
A tua produção está a subir :).
Aparte: ouvi falar da edição dum novo glossário com calão portuense (postei ontem) "Heróis à moda do Porto". Na próxima quarta e quinta-feira vou até lá outra vez, ver se consigo encontrá-lo.
Segundo as palavras do "júri" falta ainda a parte "debaixo da cintura"...
um livro era bom... mas acho que ainda é cedo, se houver outro tem de ser mais pensado que aquele primeiro, que para mim se ficou apenas por um projecto de livro, e daí o título que teve... enfim...
pois, eu também vi nas notícias esse do calão portuense, hehehe, que não passava abaixo da cintura!!! devia ser giro se passasse... era uma enciclopédia em 50 volumes!!!
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