sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
a necessidade de desenvolver uma teoria em relação a esta estética de crise cega tem-me surgido com o passar do tempo e com o desenrolar de acontecimentos. de repente tenho uma estranha necessidade de me explicar mais do que claramente. é uma exposição absoluta do eu. uma exposição que se vem criando desde os inícios do acto escrita. lembro-me da primeira vez que experimentei o poema. o que é isso do poema? o poema? o poema enquanto forma mais absoluta de todas as formas escritas, com as suas regras próprias e a sua verdade inerente, a sua verdade fabricada. era natal. estávamos em casa da minha avó em portalegre. o natal aborrece-me terrivelmente desde sempre. eu já andava com o vício dos cadernos mas ainda só tinha a aventura das frases. escrevia frases. frases enigmas. as verdades absolutas da juventude. os pensamentos da morte e da desilusão inevitável. o mergulho na violência dos dias. a frase exorcismo. a questão hamlet. um turbilhão de pensamentos que se aceleram dentro da cabeça e um inevitável desinteresse pela acção. talvez esta seja uma imagem já projectada e por isso tenho de desculpar a sua destruição, são as partidas da memória. era natal. estava em portalegre. depois do jantar de família subi ao andar de cima onde ficava o meu quarto. peguei no meu caderno. sentei-me numa secretária. havia muitas secretárias espalhadas pela casa. o meu avô morto era solicitador e tinha um escritório. as secretárias foram ali ficando como recordações de uma vida que agora era apenas memória e pó. sentei-me numa cadeira de madeira e escrevi no meu caderno preto sob a secretária mais antiga. experimentei isso do poema. dessa junção absoluta das palavras com o pensamento. ainda era apenas um fragmento da realidade. deveria ser uma frase simples mas fragmentada em verso. não me lembro e esses cadernos não existem. como aliás quase tudo o que escrevi não existe. sempre tive essa estranha necessidade destrutiva, ou auto-destrutiva. devo ter gostado da experiência. as palavras sobre o papel com a sua vida própria. como se projectassem uma luz característica. uma luz que só elas possuiam. aí, nesse dia, começou aquilo que seria o problema. todas as pessoas criam o seu problema, que é o mesmo que dizer que todas as pessoas criam o seu caminho. nesse dia algo em mim se transformou, alguma ruptura radical se produziu em mim, não tenho a certeza disto. a partir desse momento os meus cadernos já não eram mais os cadernos da escola, eram cadernos de rabiscos, de frases, frases amontoadas, textos à margem, textos de revolta pura e adolescente. penso que depois disso surgiram as leituras, os livros, começa-se a ver que o problema que se assume tem contornos que tocam noutros. o problema vai-se tornando global. de repente o problema é uma estética. de repente o problema é uma procura da forma. de repente o problema é um mergulho. um salto no infinito. uma ruptura com a vida. dos livros dos outros retirei as palavras. os livros dos outros eram livros meus. copiei-os na cabeça. escrevi as suas frases como se me pertencessem desde sempre. dos livros as palavras. da vida o ritmo. quando se vive mergulhado na violência há várias formas de torná-la suportável. eu tinha o vício do poema. o maldito vício do poema. decidi-me então a usar a violência para que ela agisse contra si mesma. haveria de escrever a maior violência de todas. o poema mais interno de todos. o poema da carne. onde todos os fantasmas pairassem como vultos escritos a sangue. é uma opção de infância. quando te fechas no quarto e esperas que termine a guerra. e só esperas que termine a guerra. para te poderes movimentar livremente no meio de uma paz armada. com o poema acabou essa paz armada. de um lado havia guerra e dentro do quarto começava a produzir-se outra. uma guerra silenciosa. uma guerra em que as palavras não eram gritadas. em que o sofrimento não era inútil. afinal a angústia servia para alguma coisa. tinha um objectivo. tinha ganho um propósito maior. tinha-se tornado arma. com a guerra poderia criar frases. a minha mãe agarrou nos meus cadernos e com a sua incompreensão de mãe desmascarou-os à sua maneira. viu-se neles. deve ter-se visto obscuramente pintada. o que ela não sabia era que nada do que ali estava escrito lhe tocava. a minha guerra era com o mundo. o mundo. o mundo que de repente se torna palpável e insignificante nas batalhas de um adolescente. o mundo que pode ser vencido ali. na dimensão de uma folha de papel. estava traçado o meu rumo. devo ter escrito coisas horríveis. mas não fazia mal. era a escola. e quando um poema se tornava fluente na sua inocência e se mostrava à gente. e a gente gostava na sua inocência do que ali estava escrito. não era do sentido. não podia ser do sentido. era da forma. era da opção da forma. era a pergunta que se colocava depois de uma afirmação verdadeira. que a adolescência identificava como verdadeira. porque era sua. a pergunta era sua. e depois descobre-se um dia que é possível transformar as coisas em metáforas. há uma explosão. uma torrente de metáforas começa agora a mascarar as frases. tudo se torna enigma. máscara de angústia em forma de fogo. aprende-se a mostrar um mundo interno de uma forma que não é clara. não se sabe bem para onde se caminha. é um terreno minado. mas a guerra não pára. a guerra insiste. e mais os livros que se vão acumulando. e novas conjugações de palavras que se vão descobrindo e a magia dos autores que vai apaixonando, criando rupturas na escrita, dando novas perspectivas, abrindo portas. depois os cadernos acompanham os braços com cada vez mais naturalidade. a guerra acompanha a cabeça de uma forma cada vez mais obscura. os fantasmas não se resolvem. vão-se resolvendo. a violência que educou os dias, como fugir-lhe? é impossível fugir-lhe. tem de se enfrentar no caminho. tem de se lutar contra ela com todas as armas que se possuem. mas a arma é apenas uma: o poema. uma simples conjugação de palavras que são cuspidas ou vomitadas com angústia sobre um papel. e o tempo... o tempo vai desenvolvendo as feridas e ao mesmo tempo os anticorpos. aprende-se a mostrar as feridas. aprende-se a mostrar a frustração da violência que educou a vida. está-se tão embrenhado no ritmo das palavras que é já impossível fugir-lhe. as metáforas ajudam. a musicalidade das conjugações ajuda. o enigma ajuda. o ritmo torna tudo estranhamente suportável. mas depois surge o dia. e o dia faz com que a violência se vire para o corpo e as palavras vão-se tornando mais claras. mais exactas. mais cruas. e haverá o dia em que a violência tenha o seu derradeiro exorcismo. e haverá o dia em que a violência seja exterminada eternamente do corpo. e haverá o dia em que a vergonha da violência seja para sempre desmascarada que se obrigue ao desaparecimento. nesse dia, talvez se mude a escrita outra vez. talvez me sente outra vez na mais velha secretária que há em portalegre com a sua memória já ela de cinza. e talvez comece tudo do zero. desse ponto em que o absoluto volta a ser possível.
colocado aqui por
Pedro Fiuza
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