domingo, 22 de novembro de 2009

apontamento

é provável que pensasse demasiado na palavra suicídio. não um suicídio no real, não um suicídio no corpo. um suicídio em que viria o silêncio absoluto. um suicídio passagem. ritual. sem sangue derramado e sem violência. como se houvesse algo mais violento do que o silêncio, quando se anda pela noite debaixo de chuva e se chega a casa mergulhado em solidões de ferro, solidões que são portas pesadas que separam a carne da vida. gostava de escrever sobre as pessoas. mas para isso teria de poder conhecer as pessoas. teria de entrar nelas. partir delas para o papel. as pessoas são enigmas. são vícios. são feridas. é preciso anular as pessoas para se poder escrever. as pessoas aparecem depois. talvez se revejam nas palavras, talvez abominem as conjugações de palavras e os verbos e os sentidos de um texto livro. os verdadeiros livros acabam por ser contra as pessoas, não por serem contra as pessoas, mas por construirem anti-pessoas, por serem pessoas codificadas, demasiado perfeitas ou demasiado irreais para que sejam possíveis. a literatura é sobre monstros. o teatro é sobre sentidos. a arte tem de esquecer. as pessoas têm de esquecer. o esquecimento é a única questão válida para a sobrevivênia. daí vem, talvez, o fascínio pelo suicídio. já devo ter atirado com a palavra esquecimento demasiadas vezes à cara. podemos esquecer-nos de tudo o que é exterior a nós menos do que se torna físico. as pessoas são ruínas. cada vez acredito mais nisto. cada um transporta a sua ruína. o seu segredo. a sua solidão. o seu silêncio. a sua angústia secreta. certo dia falava de uma ruptura. não sabia o que dizer. estava demasiado incrédulo para dizer o que quer que fosse. tentei palavras de conforto mas eram inúteis. claro. não há conforto para rupturas. para rupturas só o suicídio. é preciso deixar de ser um eu para se tornar num eu outro. é a única forma de sobreviver. é o esquecimento. as pessoas passam a maior parte do tempo a agir com interesses que nada tocam no sentido humano. porquê? por uma questão de traição delas mesmas. é um olhar sobre si e outro sobre o interesse abstracto na sobrevivência. não existe o outro na cabeça. o outro é a vantagem. o outro é o caminho ou o processo. o outro é a incapacidade de resolução do indivíduo solitário. é a crença limite no prazer e no interesse. é a morte total da salvação do mundo. escrever sobre o inumano. sobre a desumanidade. sobre fracturas que estejam tão expostas que se revelem de uma força tremenda. sobre o osso. cada vez me vejo mais mergulhado no perigo do ser errante. como se nada prendesse ou criasse laços. escrever sobre o mais rasteiro de tudo para chegar a uma nova revelação do espírito. nadar na merda. só quem conhece a falta pode falar sobre a falta. chega de apetites burgueses sobre o sofrimento alheio. comparações sobre quem está na margem. eu estou na margem. eu estou na margem. eu hei-de estar na margem até que as pedras digam o meu nome. pedras tumulares. falcatruas. nós não fomos feitos para morrer. fomos feitos para viver. sai-se para a rua e observa-se. caminhantes opacos. mirando vidros que prometem felicidade. chegam a casa e comem. deitam-se. fodem. amanhã é outro dia. compromisso nenhum. outros invejam a vida perfeita que estes possuem. mas não possuem nada. a vida que têm não é sua. é um sonho que lhes enfiaram na cabeça. construiram impérios a partir de pressupostos errados. escravos. violência. aparência. saem de casa com um sentimento altivo em relação aos que os rodeiam e depois voltam para casa com a cabeça cheia de mediocridade. latente. sem princípios. mortos sem sepultura. meios mortos. meios vivos. suicidados à nascença. iludidos com o poder. económico. social. obesos. pessoas cães. fugir a esse público. ratos políticos da vida. com palmadinhas nas costas que trazem num saco sem fundo. eu não sou o que sou. eu não sou o que sou. eu tenho esta arma chamada viagem. este vírus chamado vida. que me corrompe os dias e as noites. que me deixa aberto a solidões. que me leva para pontos em que eu não quero mais estar. há-de vir o dia. há-de vir o dia. onde estão agora as vozes? onde estou eu agora? onde? enfiadas em cabeças. deitadas sob a chuva numa rua qualquer. num esgoto da cidade obscura. cidade sem luz e tão cheia de lâmpadas. cidade onde o nojo se funde com o padrão perfeito da beleza. cidade merda. pesoas merda. eu. eu que rastejo nos antros obesos das coisas. nos antros gordurosos da vida. e vem o fogo e a água. e vem o fim. e há-de vir aquele que não nascerá para morrer. chamar-se-à silêncio. terá o rosto da morte. terá o cheiro da guerra.

1 comentário:

Anónimo disse...

um grande abraço!

z