sábado, 21 de novembro de 2009

era uma divisão de paredes comidas por uma humidade constante e com marcas de uma longa exposição ao tempo, uma luz branca que tornava o ambiente demasiado frio para que fosse confortável e que, ao mesmo tempo, dava uma luz exagerada e mostrava todas as cicatrizes das paredes e dos móveis. a decoração era mínima, velha, gasta, com um gosto bastante duvidoso, quase que descuidado. um candeeiro demasiado novo que contrastava com a estética envolvente. estética? sim, havia uma estética ali por muito estranha que fosse, notavam-se ali os vícios e os hábitos de quem habitava aquele cubículo bafiento, saturado de tabaco e de odores de corpo. no centro estava a cama. uma cama de casal feita de madeira já pouco envernizada, uma cama rangente, encostada à parede pela cabeceira, ao lado uma cadeira que servia de mesa, com um relógio e um pacote de lenços, com uma garrafa de água vazia, tombada, lixo que por descuido ali tinha ficado nalguma noite ou nalgum dia e que já parecia demasiado parte do mobiliário para que fosse deitado fora. a cama ocupava ali uma posição central naquele quarto, trono de algum rei em decadência, rei sem reino, rei vagabundo, provavelmente atirado para canto depois de perdido o esplendor da carne. a cama tinha uma colcha em tons de verde. por cima da cabeceira, na parede, um mapa do mundo, que deve ter sido palco de sonhos, sonhos de fugas e de viagens irrealizáveis, sonhos de dias de sol, de países perfeitos, de sistemas infalíveis. um mapa que permitia o sonho e que era da mesma forma a consciência certeira do lugar e da impossibilidade em que o reino tinha caído. chamava-se louise. tinha fugido da casa dos pais durante a adolescência. cansada das limitações da província, de não poder enxergar com a vista mais do que uns míseros palmos de futuro, cansada de se ajoelhar em igrejas por uma obrigação maior e totalmente falsa, uma obrigação que os outros pareciam criar-lhe, para bem, diziam, da salvação, como se a salvação maior não fosse a terrena. louise. o seu nome primeiro não era esse. nome já esquecido. tinha-se dado esse a si mesma na sua viagem iniciática, como se um nome novo fosse uma outra vida, um novo baptismo, também ele religioso mas de uma religião nova, única, uma religião de que louise era a única seguidora, pastora e rebanho de si mesma. nunca mais soube dos pais, não queria, tinha aquele crime que é feito de vergonha e orgulho metido na sua cabeça de mulher, além disso, podiam já estar mortos. os pais morrem quando ignoram os filhos. os pais não têm morte física, o mundo não lhes deu essa possibilidade quando criou os laços de sangue. louise estava velha. sentada naquele quarto, numa poltrona de um requinte decadente, com o seu corpo usado, estava pequena, mirrada, pássaro de ossos e pele, uma imagem faustiana, com o conhecimento mas sem a alma, o problema era que o seu diabo era um ser imaterial, um grito na terra. louise tinha mãos de aristocrata, amarelecidas pelo tabaco e pela vida mas mantendo o lado esguio e inútil desses seres de ninguém vestidos de burguesia. tinha tentado o destino. revoltada com sentido amargo. conformada o suficiente com a fraqueza da vida para se acomodar à sua situação de vazio. no início da sua segunda vida tinha uma mala de sonhos e uma de roupa que não usaria nunca mais. tinha juntado uns dinheiros para uma sobrevivência inicial. mas a cidade pode deslumbrar os espíritos inquietos e louise era dos espíritos que têm esse chamamento da vida, a disponibilidade total para embarcar no absoluto das coisas, a crença desinteressada no outro. acabou por se perder. embalada por canções distantes. nos meios ardilosos do crime. o corpo por menos de nada. a vida por ainda menos do que isso. sem poder de resposta, ali estava ela, com o tempo sobre si, numa poltrona decadente num quarto, único espectador da ruína, espectador passivo, impotente perante a violência maior, corpo vendido, corpo pisado, maltratado a troco de fome, miséria total. louise, a santa, a velha com pouca idade, magra e delicada, com o olhar de quem conhece a vida por dentro, a vida em todos os cantos de si mesma. sentada ali. atirada pelo mundo, qual saco de despojos. guerreira de nenhuma guerra, uma lágrima silenciosa cai-lhe no rosto, ela não a limpa, deixa-a escorrer até à boca, sorve-a, sente o sabor salgado da sua infelicidade, levanta-se da sua posição. levanta-se e anda. lázaro bíblico. o corpo tremente mas estranhamente digno. dirige-se à varanda. afasta as cortinas vermelhas como quem abre o teatro do mundo e se prepara para o espectáculo. sorve o ar com sofreguidão. olha o céu com o desejo infinito de voar. digna e sem alma. perto do céu. unificada com a terra. sobe o gradeamento verde de ferro da sua varanda, salta. como um santo cai do seu altar último. até tocar no chão.

1 comentário:

xico ao quadrado disse...

música para os olhos!gosto.ponto