domingo, 29 de novembro de 2009

e pronto. estreia. como um copo de vidro. não deixo mais isto. está decidido. nada que me prenda os pés. é necessário voar para que não se bata no chão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

homenagem do dia: aldous huxley

domingo, 22 de novembro de 2009

apontamento

é provável que pensasse demasiado na palavra suicídio. não um suicídio no real, não um suicídio no corpo. um suicídio em que viria o silêncio absoluto. um suicídio passagem. ritual. sem sangue derramado e sem violência. como se houvesse algo mais violento do que o silêncio, quando se anda pela noite debaixo de chuva e se chega a casa mergulhado em solidões de ferro, solidões que são portas pesadas que separam a carne da vida. gostava de escrever sobre as pessoas. mas para isso teria de poder conhecer as pessoas. teria de entrar nelas. partir delas para o papel. as pessoas são enigmas. são vícios. são feridas. é preciso anular as pessoas para se poder escrever. as pessoas aparecem depois. talvez se revejam nas palavras, talvez abominem as conjugações de palavras e os verbos e os sentidos de um texto livro. os verdadeiros livros acabam por ser contra as pessoas, não por serem contra as pessoas, mas por construirem anti-pessoas, por serem pessoas codificadas, demasiado perfeitas ou demasiado irreais para que sejam possíveis. a literatura é sobre monstros. o teatro é sobre sentidos. a arte tem de esquecer. as pessoas têm de esquecer. o esquecimento é a única questão válida para a sobrevivênia. daí vem, talvez, o fascínio pelo suicídio. já devo ter atirado com a palavra esquecimento demasiadas vezes à cara. podemos esquecer-nos de tudo o que é exterior a nós menos do que se torna físico. as pessoas são ruínas. cada vez acredito mais nisto. cada um transporta a sua ruína. o seu segredo. a sua solidão. o seu silêncio. a sua angústia secreta. certo dia falava de uma ruptura. não sabia o que dizer. estava demasiado incrédulo para dizer o que quer que fosse. tentei palavras de conforto mas eram inúteis. claro. não há conforto para rupturas. para rupturas só o suicídio. é preciso deixar de ser um eu para se tornar num eu outro. é a única forma de sobreviver. é o esquecimento. as pessoas passam a maior parte do tempo a agir com interesses que nada tocam no sentido humano. porquê? por uma questão de traição delas mesmas. é um olhar sobre si e outro sobre o interesse abstracto na sobrevivência. não existe o outro na cabeça. o outro é a vantagem. o outro é o caminho ou o processo. o outro é a incapacidade de resolução do indivíduo solitário. é a crença limite no prazer e no interesse. é a morte total da salvação do mundo. escrever sobre o inumano. sobre a desumanidade. sobre fracturas que estejam tão expostas que se revelem de uma força tremenda. sobre o osso. cada vez me vejo mais mergulhado no perigo do ser errante. como se nada prendesse ou criasse laços. escrever sobre o mais rasteiro de tudo para chegar a uma nova revelação do espírito. nadar na merda. só quem conhece a falta pode falar sobre a falta. chega de apetites burgueses sobre o sofrimento alheio. comparações sobre quem está na margem. eu estou na margem. eu estou na margem. eu hei-de estar na margem até que as pedras digam o meu nome. pedras tumulares. falcatruas. nós não fomos feitos para morrer. fomos feitos para viver. sai-se para a rua e observa-se. caminhantes opacos. mirando vidros que prometem felicidade. chegam a casa e comem. deitam-se. fodem. amanhã é outro dia. compromisso nenhum. outros invejam a vida perfeita que estes possuem. mas não possuem nada. a vida que têm não é sua. é um sonho que lhes enfiaram na cabeça. construiram impérios a partir de pressupostos errados. escravos. violência. aparência. saem de casa com um sentimento altivo em relação aos que os rodeiam e depois voltam para casa com a cabeça cheia de mediocridade. latente. sem princípios. mortos sem sepultura. meios mortos. meios vivos. suicidados à nascença. iludidos com o poder. económico. social. obesos. pessoas cães. fugir a esse público. ratos políticos da vida. com palmadinhas nas costas que trazem num saco sem fundo. eu não sou o que sou. eu não sou o que sou. eu tenho esta arma chamada viagem. este vírus chamado vida. que me corrompe os dias e as noites. que me deixa aberto a solidões. que me leva para pontos em que eu não quero mais estar. há-de vir o dia. há-de vir o dia. onde estão agora as vozes? onde estou eu agora? onde? enfiadas em cabeças. deitadas sob a chuva numa rua qualquer. num esgoto da cidade obscura. cidade sem luz e tão cheia de lâmpadas. cidade onde o nojo se funde com o padrão perfeito da beleza. cidade merda. pesoas merda. eu. eu que rastejo nos antros obesos das coisas. nos antros gordurosos da vida. e vem o fogo e a água. e vem o fim. e há-de vir aquele que não nascerá para morrer. chamar-se-à silêncio. terá o rosto da morte. terá o cheiro da guerra.
descobri na escrita esse acto compulsivo que era necessário para substituir as pessoas. não fiquei feliz com isso. deitei fora imensos cadernos, cheios de frases enigmas que eu não queria entender. o mundo estava cheio de escritores que falavam por mim e eu podia deixar-me ir na corrente da solidão, passivo e silencioso. um nada vazio e impenetrável com uma voz desconhecida. um lugar em que o poder se quebrava, para sempre revoltado, com quem? com o sangue e a fome.

sábado, 21 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

era uma divisão de paredes comidas por uma humidade constante e com marcas de uma longa exposição ao tempo, uma luz branca que tornava o ambiente demasiado frio para que fosse confortável e que, ao mesmo tempo, dava uma luz exagerada e mostrava todas as cicatrizes das paredes e dos móveis. a decoração era mínima, velha, gasta, com um gosto bastante duvidoso, quase que descuidado. um candeeiro demasiado novo que contrastava com a estética envolvente. estética? sim, havia uma estética ali por muito estranha que fosse, notavam-se ali os vícios e os hábitos de quem habitava aquele cubículo bafiento, saturado de tabaco e de odores de corpo. no centro estava a cama. uma cama de casal feita de madeira já pouco envernizada, uma cama rangente, encostada à parede pela cabeceira, ao lado uma cadeira que servia de mesa, com um relógio e um pacote de lenços, com uma garrafa de água vazia, tombada, lixo que por descuido ali tinha ficado nalguma noite ou nalgum dia e que já parecia demasiado parte do mobiliário para que fosse deitado fora. a cama ocupava ali uma posição central naquele quarto, trono de algum rei em decadência, rei sem reino, rei vagabundo, provavelmente atirado para canto depois de perdido o esplendor da carne. a cama tinha uma colcha em tons de verde. por cima da cabeceira, na parede, um mapa do mundo, que deve ter sido palco de sonhos, sonhos de fugas e de viagens irrealizáveis, sonhos de dias de sol, de países perfeitos, de sistemas infalíveis. um mapa que permitia o sonho e que era da mesma forma a consciência certeira do lugar e da impossibilidade em que o reino tinha caído. chamava-se louise. tinha fugido da casa dos pais durante a adolescência. cansada das limitações da província, de não poder enxergar com a vista mais do que uns míseros palmos de futuro, cansada de se ajoelhar em igrejas por uma obrigação maior e totalmente falsa, uma obrigação que os outros pareciam criar-lhe, para bem, diziam, da salvação, como se a salvação maior não fosse a terrena. louise. o seu nome primeiro não era esse. nome já esquecido. tinha-se dado esse a si mesma na sua viagem iniciática, como se um nome novo fosse uma outra vida, um novo baptismo, também ele religioso mas de uma religião nova, única, uma religião de que louise era a única seguidora, pastora e rebanho de si mesma. nunca mais soube dos pais, não queria, tinha aquele crime que é feito de vergonha e orgulho metido na sua cabeça de mulher, além disso, podiam já estar mortos. os pais morrem quando ignoram os filhos. os pais não têm morte física, o mundo não lhes deu essa possibilidade quando criou os laços de sangue. louise estava velha. sentada naquele quarto, numa poltrona de um requinte decadente, com o seu corpo usado, estava pequena, mirrada, pássaro de ossos e pele, uma imagem faustiana, com o conhecimento mas sem a alma, o problema era que o seu diabo era um ser imaterial, um grito na terra. louise tinha mãos de aristocrata, amarelecidas pelo tabaco e pela vida mas mantendo o lado esguio e inútil desses seres de ninguém vestidos de burguesia. tinha tentado o destino. revoltada com sentido amargo. conformada o suficiente com a fraqueza da vida para se acomodar à sua situação de vazio. no início da sua segunda vida tinha uma mala de sonhos e uma de roupa que não usaria nunca mais. tinha juntado uns dinheiros para uma sobrevivência inicial. mas a cidade pode deslumbrar os espíritos inquietos e louise era dos espíritos que têm esse chamamento da vida, a disponibilidade total para embarcar no absoluto das coisas, a crença desinteressada no outro. acabou por se perder. embalada por canções distantes. nos meios ardilosos do crime. o corpo por menos de nada. a vida por ainda menos do que isso. sem poder de resposta, ali estava ela, com o tempo sobre si, numa poltrona decadente num quarto, único espectador da ruína, espectador passivo, impotente perante a violência maior, corpo vendido, corpo pisado, maltratado a troco de fome, miséria total. louise, a santa, a velha com pouca idade, magra e delicada, com o olhar de quem conhece a vida por dentro, a vida em todos os cantos de si mesma. sentada ali. atirada pelo mundo, qual saco de despojos. guerreira de nenhuma guerra, uma lágrima silenciosa cai-lhe no rosto, ela não a limpa, deixa-a escorrer até à boca, sorve-a, sente o sabor salgado da sua infelicidade, levanta-se da sua posição. levanta-se e anda. lázaro bíblico. o corpo tremente mas estranhamente digno. dirige-se à varanda. afasta as cortinas vermelhas como quem abre o teatro do mundo e se prepara para o espectáculo. sorve o ar com sofreguidão. olha o céu com o desejo infinito de voar. digna e sem alma. perto do céu. unificada com a terra. sobe o gradeamento verde de ferro da sua varanda, salta. como um santo cai do seu altar último. até tocar no chão.

atenção


Otelo, de Shakespeare, encenação de Kuniaki Ida, produção do Teatro do Bolhão, estreia 28 de Novembro!!! falta uma semana.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

banda sonora dos dias

homenagem a godard

desabafo

uma barba sem bigode é como um bigode sem barba.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

homenagem a bergman











banda sonora dos dias

a mudança do rosto. flores que nascem sobre a terra. húmida. planícies de batalhas. campos em que a morte se espalha. o rosto desfigurado da guerra. depois da guerra. o rosto quebrado da desolação. era um homem e uma mulher. um dia os abismos cairam na terra. entre eles. os sonhos desfeitos. a consciência eterna do fim. e o rosto. esse na sua apresentação funesta. desconectando realidades. outras falcatruas. outras feridas. e ele dança sobre a vida como se o amanhã fosse irreal. e ela que chama a realidade palpável das coisas. ele que não escuta. são corpos cicatrizes. aberturas profundas na terra. caminhos. sulcos. erupções. era um homem e uma mulher. eram o quê? o vento sobre o pó. cinzas. animais em chamas correndo por montanhas de chuva. líquida a terra. líquido o corpo. desfeitas as conjunções. pecado. crime. mentira. a loucura da impossibilidade tocando as mãos religiosamente brancas. pára com os advérbios. que fazes tu agora? mero corpo incolor nas ruas de ninguém. quem te toca? quem te embala? hás-de vir depois do vento e sobre a tempestade como se viesses da guerra. já não te reconheço e tu és eu. quem és tu? estás como que deitado numa caixa obscura. casulos da vida. larvas da vida. sem alimento nos dias e nas noites. onde te encontras? corpo. onde estás? para que lado? qual a saída? a guerra fechou a porta e já não podes subir ao branco. à luz. depois da cinza a água que limpará o segredo. o túnel aí tão perto que lhe podes tocar. mas cuidado. ele faz com que a matéria desapareça. como se fosse um crime sentir o sangue derrotado. como se fosse um crime abjecto entregar as mãos. como se fosse um erro despedir-me do que não quero. há-de vir o tempo. espera-se a um canto até que a voz me chame. a minha voz me chame.

banda sonora dos dias

terça-feira, 17 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

homenagem a jean genet





tinha plena consciência da merda em que me estava a afundar. no meio de uma densa obscuridade esse era o meu único pensamento de clareza sem limites. a afundar-me na merda. com cada vez menos saídas. a frustrar conscientemente os objectivos. como se o meu dever fosse falhar. lá está aqui o sentido do crime que se perpetua por dentro, um crime que é um engano. em pequeno fascinavam-me os golpes, atingiam uma dimensão poética que contrastava com o meu casulo mínimo. sonhei demasiado alto, houve um dia em que as palavras me visitaram com um ritmo nocturno, demasiado tarde, estava contada a história, o fascínio do registo da queda, o documento da queda em tempo real, que é ao mesmo tempo prisão e liberdade. voei demasiado alto na minha noite, no meu quarto, enquanto sonhava amores perdidos, as coisas gigantes da poesia. mas o mundo não tinha poesia, e se a tinha, certamente que não era a que eu queria. uma poesia de outros, tornada lugar absoluto, em que os livros eram objectos mais do que sagrados. era tarde para outras funções, estaria para sempre afastado da norma, era um corpo sem lei. e depois o amor, a expressão maior do mundo, purificado no sangue, atirado às pedras como um ser suicida. lá me ia eu esquecendo de mim enquanto me fechava cada vez mais no meu dentro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

e depois chegou-me o momento de não me poder diferenciar de um criminoso. era uma condição que me parecia natural, era um chamamento, uma coisa que deve ter-se desenvolvido comigo até ter chegado a um momento em que eu teria de aceitar o que vivia para poder seguir. talvez daqui venha o problema, em muitos casos é o carrasco quem corta a sua própria cabeça. e a morte é amante da cobardia. eu tinha a vida que não podia ter. que me estava vedada por uma questão de sangue e necessidade. o que se passou foi que numa conjuntura específica do tempo, o mundo inventou um monstro, e esse monstro sou eu, a minha luta é comigo. há muitos monstros neste mundo mas nem todos se apontam as armas. isto não é um orgulho. isto é um trabalho. de repente comecei a reparar que tinha uma bomba nas mãos e, essa bomba, estava para sempre soldada a mim. por vezes apareciam anjos e a bomba era como que esquecida, mas os anjos voltam sempre para o seu céu, e a bomba lá voltava dando sinais de existência. o processo sempre foi demasiado simples, é do nascimento até à morte. uns preocupam-se com os pontos, outros com o que está entre eles, outros com o que está entre eles e neles mesmos, outros só com um, o ponto último, esse é o meu caso, tenho a vida por resolver, até à morte, esse lugar.
se ganhasse muito dinheiro iria plantar tâmaras para a Tunísia. o Carvalhal é o novo treinador do meu clube, todo eu estou apreensivo em relação a este assunto!!! falta pouco mais de uma semana para a estreia. tenho saudades de coisas. preciso de fazer textos meus. preciso de trabalhar mais conscientemente para mim. tenho de escrever mais e melhor. preciso de um guarda-chuva. o tempo aqui é horrível. já li tudo o que aqui tinha. quero ler O HOMEM SEM QUALIDADES do Robert Musil. não estou habituado a ter tanto tempo. é uma seca. preciso de livros. preciso de fazer teatro. preciso de voltar a aprender o corpo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

banda sonora dos dias. o criador recorrente.

apontamento

é a selva. andam palavras pelo ar em forma de gritos monstros. selva. como se as palavras só comessem os corpos presos. espaço aberto mas tão cerrado com violência que se torna irreal. é um sentir frio, frágil, o mergulho que se espera para o obscuro. ir e voltar. uns olhos do outro lado, fixos na perversidade. corpo objecto talvez abjecto. tempo para crescer depois da morte que foi o exílio. exílio? não se pode chamar isso a uma fuga da vida. o exílio é homicida e a fuga é suicida. ainda que as separações absolutas só existam nos livros e na cabeça dos outros. de dentro para fora. é agora que se escreve a palavra merda. merda.
chegou-te a noite a casa. qual noite? qual casa? um corpo e um saco. meia dúzia de sonhos obscuros, a noite. há insectos que se arrastam no chão. estás na rua. um buraco. duas cadeiras. sentas-te numa mas ninguém chega. saltas directo da cadeira para o solo frio e húmido da noite. afinal é noite. o teu problema é a casa. estás então deitado na terra. o ouvido colado a ela. um pulsar. um grito de dentro do mundo que nunca tinhas escutado. demasiado tempo à espera. na tua noite sem casa sentado numa das duas cadeiras e à espera. o grito da terra fria da noite massacra-te agora a cabeça. podes sempre meter o teu corpo no saco. saco abrigo. corpo bunker. soterrado pelas explosões da metafísica mentira. cala-te. silêncio. que o pulsar do mundo te atravesse essa tua cabeça de miséria. és um ser doente. não há casa possível para ti num mundo que não tem treva. nem guerra. nem outra forma física de falcatrua. adeus.
"O homem que aprende a saber de onde vem pode maravilhar-se por ser o que é, ou então, recordando as distorções que sofreu, ceder a um desencanto que o imobilizará, a menos que, à maneira de Nietzsche, se valha do humor genealógico ou da desenvoltura dos jogos críticos."

BLANCHOT, Maurice; Foucault como o imagino

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

banda sonora dos dias.

banda sonora dos dias.

Amanda Palmer: Exit Music (for a Film) by Radiohead from shoottheplayer.com on Vimeo.

um homem fala da violência que não tem para justificar a violência que gostaria de ter.
cidades.
pessoas de papel.
- aproximas-te do fim a uma velocidade de vertigem. é o chão quem te chama. espécie de queda ou doença. espécie de coisa de dimensão interna, estranha e invisível. corpo de ossos. desorganizado. máquina de zeros.
- sou um parasita do tempo. é isso.
- provavelmente nulo. sabendo o que és e o que fazes tens tudo para a resolução.
- resolução, revolução, neblina no olhar, boca em chamas. o que sei sei. o que sei é um pensamento enfermo, atirado para um covil de imagens selvagens, pesadelos. o fumo compulsivo de noites silenciosas. esboço de corpo.
- perdes o tempo com ideias. máscaras.
- é onde me ganho. tornei-me no rei do meu pensamento. talvez tenha definhado por fora. já não reconheço quem sou, o que sou.
- a verdade é que não és nada.
- a verdade... a verdade começa sempre com a expressão: era uma vez...
- é uma verdade histórica. um registo.
- o que são as coisas senão verdades mal contadas? ilusões tornadas factos? feridas tornadas bandeiras? vida tornada morte?
cerimónia. o quase morto está deitado numa quase cama. sangra com um ritmo de alucinação. o seu sangue salta da barriga em direcção ao tecto. fonte vermelha. torrente interminável. em volta do quase morto estão familiares, amigos, desconhecidos e outros corpos de plástico. todos deixam cair lágrimas, mesmo os de plástico. a cena é perfeita esteticamente e apresenta a mais absoluta de todas as simetrias. uma música paira no ar. é do estilo clássico, claro. por vezes o quase morto lança uns sons de sofrimento profundo e como reacção todos os presentes soltam os maiores rios de lágrimas que lhes é possível, mesmo os de plástico. a música insiste-se, repete-se, espécie de mantra. é uma cena matemática. aqui não existe tempo. a cerimónia da quase morte é infinita. o sangue e as lágrimas recusam o seu fim. o quase morto rodeado de quase vivos e de corpos de plástico, inseridos na mais absurda bolha do universo, um buraco negro que suga eternamente o sofrimento irreal de seres estáticos, estéticos, com fluxos cerimoniais. só na morte verdadeira voltarei a falar de respiração. ainda espero a luz que me visite estas imagens. lá fora está o tempo. quieto.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

banda sonora dos dias

Come To Daddy (Director's Cut) by Aphex Twin from aka anuar on Vimeo.

banda sonora dos dias

Seven from Fever Ray on Vimeo.

- pensava que tinha perdido tudo, meu caro.
- e perdi, não sei porquê o tom de dúvida.
- vejo-o de pé. parece saudável.
- a doença que tenho é invisível.
- e que lhe faz ela, a doença?
- come a minha vida devagar.
- como assim, come?
- é uma espécie de cancro no espírito que me puxa para baixo. uma doença explosiva. não me larga, a doença, obriga-me a viver.
- nada o pode obrigar a viver.
- há uma coisa que sim.
- o quê?
- a cobardia.
- costuma pensar muito em suicídio?
- constantemente. não em suicídio rápido. antes esta forma de morte prolongada. perpetuar o sofrimento para chegar à explosão.
- a sua doença caminha intensificando-se...
- claro, é uma doença progressiva, hei-de ficar tão frágil que terei de rastejar.
- e a cura?
- já lhe disse, sou cobarde.
uma velha dá comida a pombas e enxota as gaivotas. sentido humano: no meio de toda a merda em que se vive, a respiração torna-se estranhamente selectiva. ruptura com isto tudo. tornei-me num pedaço de chão.
vais no caminho para casa. são os silêncios do costume. há pensamentos loucos. a estranha voz interna da auto-mentira. exterior: não há luz. tudo está misteriosamente escuro, vou dizer que tudo está precipitadamente morto. ninguém. pensamento que grita. são suicídios, são revisitações abstractas do tempo, alojadas sobre os ombros, as costas atiradas para a terra. um ritual último. uma cerimónia de regresso. escadas que descem, obscuras no seu fumo. cabeça voadora, separada do corpo, pendurada na corda, dentro da água. voz fracturada. coleccionador de venenos. eu sou o desconhecedor de sentidos. um rei de nenhum reino. vais no caminho para casa. silêncios. paisagem desolada por uma projecção da carne, do sangue, do meu coração. está frio à minha volta. estarei perto de um qualquer fim. mergulho.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

era uma palavra que se proclamava a si mesma. um lugar depois do grito. o meu nome. como saído de uma boca com a inocência da primeira vez. acabado de nascer e já demasiado perto da morte. maldita infância. este terror insuportável das famílias como estilhaços. o pai morto. fantasmas de uma cólera inexplicável. descrição da infância: portas fechadas mas constantemente arrombadas, gritos, uma paisagem absurda de violência que se espalhou pelo tempo. ter a casa noutra terra. voltar sempre à cinza, casa queimada, corpos em fogo. daí vêm as palavras limitadas. falcatrua imensa na cabeça infantil. braços. pernas. corpo entalado entre a mesa e a máquina de lavar. sai daqui homem.